A origem da festa racista de Sta. Bárbara d ́Oeste e Americana – Segunda Parte

A origem da festa racista de Sta. Bárbara d ́Oeste e Americana – Segunda Parte

16/04/2021 0 Por Equipe Tribuna

Nesta nova entrega buscamos mostrar como, apesar da derrota dos racistas na Guerra Civil Americana, a supremacia branca não só persistiu nos EUA como se expandiu pelo mundo. Compreender como através de livros, peças de teatro e filmes os ex-confederados deturparam os motivos da guerra e justificaram uma nova e violenta segregação racial. E que a Festa Confederada é mais uma manifestação desta longa tradição racista que perdura entre nós.

Primeira Parte: A luta antirracista e a supremacia racial dos Confederados de Sta. Bárbara d ́Oeste e Americana.


No dia 5 de dezembro, na transmissão online para divulgar a Virada Online do governo estadual, Rose Trochmann, curadora do museu da imigração de Sta. Bárbara d ́Oeste, declarou que:

“É um orgulho ostentar aquela bandeira, porque representa as estrelas dos 13 estados confederados. Nunca tivemos problemas com isso e não há racismo entre nós.

A bandeira a qual a curadora se refere é o maior estandarte racista dos EUA, que manteve-se no pós-guerra civil como um símbolo de resistência da supremacia branca contra a igualdade racial. A negação do racismo na própria cidade se contradiz com as denúncias realizadas pelo próprio movimento negro de Sta. Bárbara e Americana. E como veremos a seguir, o racismo e a negação foram ensinados de geração em geração até nossos dias.

 

A resistência racista do Sul

Um ano após o fim da Guerra Civil Americana em 1866 e com uma intervenção federal de índole político/militar nos estados do sul, o livro de “história” do jornalista confederado Edward Pollard deu não só o nome, mas também conteúdo, do que até hoje conhecemos como o mito racista da Causa Perdida. Em suas páginas a guerra se transformou numa luta à morte entre um Sul aristocrático e cavalheiresco, e um Norte urbano e libertino, interessado em destruir seu “estilo de vida” em nome do lucro e do progresso. Resumiu-se o conflito a uma mera disputa de direitos soberanos de um estado regional sobre o outro.

A intervenção federal, chamada de Reconstrução, tinha por objetivo garantir o cumprimento das três novas emendas constitucionais: a abolição da escravidão em todo o território dos EUA, a proteção igual perante a lei e o direito ao voto. Também era necessário assegurar o acesso aos cargos públicos como juízes e policiais para a população negra. No entanto, os ex-confederados podiam até aceitar a derrota militar, mas jamais suportariam uma derrota racial e de classe. Os brancos racistas resistiram de todas formas possíveis à igualdade civil, inclusive usando o terror contra a população negra.

Em 1867, surgiu das mãos de um ex-general confederado, a conhecida organização terrorista Ku Klux Klan. Fazendo uso da violência, seus integrantes intimidavam os afro-descentes para que não exercessem qualquer direito civil básico que lhes foi conquistado: cadastro eleitoral, votar, comprar terras ou imóveis, escolas, casamento, etc. O terror era exercido a partir de incêndios de casas e colheitas, assassinatos por enforcamentos, espancamentos e linchamentos.

Laura Nelson, linchada junto a seu filho de 14 anos em Okemah, Oklahoma, 1911. Foto: George H.Farnum

A destruição infligida pela guerra e as imposições de igualdade racial levaram muitos sulistas a abraçarem as justificativas da Causa Perdida como uma bandeira de luta. O principal deles é um desconhecido para nós brasileiros; Thomas Dixon foi o maior divulgador e propagandista da Causa Perdida nos EUA e no mundo. Dedicou sua vida na produção de livros, peças de teatro, conferências e roteiros de cinema para este propósito. Suas populares palestras racistas chegaram a ser ouvidas, em quatro anos, por  cinco milhões de pessoas.

 

A ficção a serviço do racismo

Thomas Dixon sabia que a Causa Perdida não podia estar somente nos livros de história confederados e suas escolas, deveria ser parte de toda a cultura sulista. Por isso escreveu sua famosa trilogia sobre a Reconstrução com a qual criou um universo onde a supremacia branca devesse consertar o desastre causado pela emancipação dos escravizados.

Assim, em 1902, a primeira edição de As manchas do leopardo: o fardo do homem branco foi vendida antes mesmo de ser impressa. O romance mostra um derrotado soldado voltando para sua cidade e confrontando com uma dupla de “oportunistas”; um branco liberal e um negro, “famintos” de poder, que tinham como plano roubar a riqueza do sul. Perante esta situação nasce a “protetora” Ku Klux Klan, uma organização que defende as mulheres brancas dos negros “estupradores” e a população de governos “corruptos”. Depois veio O homem do clã: um romance da Ku Klux Klan (1905) onde o vilão, o Partido Republicano, ameaça ampliar os direitos civis da população negra e um valente advogado lidera uma rebelião para forçar a renuncia das autoridades locais, o fechamento do jornal negro da cidade e o banimento dos eleitores negros na próxima eleição. Em discurso épico na convenção do Partido Democrata o advogado sentencia: “Este é um governo de homens brancos, concebido por homens brancos e mantido por homens brancos ao longo de todos os anos de sua história, e pelo Deus de nossos pais, será governado por homens brancos até que o Arcanjo chame o fim dos tempos!”. A trilogia finaliza com O Traidor: a história da queda do Império Invisível (1907), relata a decadência da Ku Klux Klan através de um recém nomeado chefe que segue a ordem do fundador para dissolver a organização em seu estado.

As manchas do leopardo vendeu milhares de exemplares, traduções e outorgou fama internacional para Thomas Dixon. Fonte: Divulgação.

Toda a produção cultural da Causa Perdida tinha como papel fundamental a reunificação entre o Norte e o Sul sobre as bases da segregação racial. A unificação nacional nos marcos da igualdade civil de toda a população foi derrotada a sangue e fogo pelos racistas sulistas. O novo século impunha novos perigos sociais e uma nova aliança entre as elites estadunidenses era necessária para combatê-los.

 

A reconciliação nortista e a nova ameaça

Com o fim da intervenção federal todos os estados do sul tiveram o aval implícito do Governo para impor leis segregacionistas à população negra, que tornavam impossível o exercício de seus direitos políticos, sociais e econômicos, inclusive o direito ao voto. Em 1896, a Suprema Corte de Justiça dos EUA confirmou que todas as leis racistas eram constitucionais e criou-se assim a doutrina dos “iguais, mas separados”. Legalizando uma prática já realizada de exclusão dos negros dos espaços públicos e de convivência social (bairros, restaurantes, banheiros, bebedouros, etc).

As preocupações da classe dominante estadunidense, no início do século XX, mudaram completamente. As consequências do pós-guerra e a melhor forma de reincorporar os estados sulistas à União deixaram de ser prioridades, frente às novas massas urbanas que não paravam de crescer. Com o aumento industrial, a radicalização da luta operária por direitos e a forte imigração europeia seriam as ameaças que colocariam de lado velhas diferenças entre as elites nortista e sulista.

O Norte abraçou assim, o mito da Causa Perdida, ajudando a criar uma narrativa – juntamente com Hollywood – ainda mais forte e fundamentada na necessidade de união e da superioridade da raça branca frente às novas ameaças. Este novo rearranjo também se expressou na presidência do sulista e racista Woodrow Wilson que em 1913 discursou para seus “iguais”: “Nós nos encontramos novamente como irmãos e camaradas de armas, não mais como inimigos.” Em seu mandato  voltou novamente a segregação racial para as dependências federais.

 

A Ku Klux Klan chega nas telonas e na Casa Branca

Nos EUA o cinema já era um veículo com milhares de espectadores pelo país em 1915. Neste ano estreou o filme Nascimento de uma nação, uma adaptação do livro de Thomas Dixon O homem do clã: um romance da Ku Klux Klan, dirigido pelo inovador e supremacista D. W. Griffith. Neste longa-metragem é apresentada a visão de que a abolição e a reconstrução nortenha causaram a imperdoável subversão das “hierarquias naturais de classe e de raça”.

Racistas convictos e amigos de juventude, Thomas Dixon  e o presidente Woodrow Wilson exibiram o filme na Casa Branca conseguindo uma grande divulgação para a época. Esta combinação de mídia e publicidade fizeram ressurgir a uma Ku Klux Klan que naquele momento estava bem adormecida. O auge foi tal que em cinco anos a Ku Klux Klan chegou a alcançar 4 milhões de membros na década de 1920.

Os heróis da Ku Klux Klan surgem para salvar a supremacia branca da “depravação” racial dos ex-escravizados. Fonte: Wikipedia

Foi neste ambiente de segregação e violência racial que a autora do livro E o vento levou, e toda uma geração de jovens, se inspiraram para manter e prolongar o legado supremacista. A jornalista e escritora Margaret Mitchell através de seu livro e filme revindicou os motivos e os personagens da Causa Perdida, como nesta passagem sobre a Ku Klux Klan: “Eles saem à noite a cavalo vestido como fantasmas e visitam os aventureiros ianques, que roubam dinheiro, e os negros presunçosos.”


Na Terceira Parte da matéria sobre a festa dos confederados debateremos por que nós brasileiros conseguimos ver uma grande história de amor no filme E o vento levou , mas perdemos os elementos relativos à guerra civil, que serve de pano de fundo para todo o roteiro, e suas consequências. Como uma grande série da década dos 80, Os Gatões, continuou com a tradição racista na televisão brasileira. E por que o ex-presidente Abraham Lincoln é tão famoso na América do Sul.

 

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