Mais que musas: Mulheres que construíram a identidade musical brasileira

Mais que musas: Mulheres que construíram a identidade musical brasileira

27/03/2021 0 Por Equipe Tribuna

Musa, no senso comum atual, é uma palavra usada para designar mulheres que inspiram homens em suas produções de arte. Como nossa cultura foi historicamente moldada pela tradição europeia, fruto do processo de colonização, a palavra música vem do grego mousikḗ, associada a moûsa, ou seja, às personagens femininas da mitologia grega cujo objetivo era agradar aos deuses do Olimpo.

Não é de hoje que mulheres são relegadas ao papel de musas inspiradoras no meio artístico, não sendo diferente na música, onde a maior parte dos instrumentistas e compositores que vemos são homens. Há de se notar que, sendo o Brasil um país das mais diversas origens geográficas e culturais, existem diversos recortes que podem ser feitos a fim de se analisar de onde vem tal elemento cultural, e assim, compreendermos a trajetória das mulheres músicas no nosso país.

 

A música como fazer social e histórico

Os primeiros vestígios da produção de música pelo ser humano podem ser vistos em pinturas rupestres, onde se encontram diversos instrumentos musicais em cerimônias e ritos sociais relacionados à evocação de forças da natureza, encerramento de ciclos como a morte-vida, caça e guerra. A música tinha uma relação com o divino, estando ligada a cerimônias religiosas e culto aos deuses presentes, sendo uma ferramenta para além do fazer técnico, que possuía, e ainda possui, um papel social fundamental na estruturação da sociedade e de nossas tradições.

“Dança de Cogul” retrata a dança de mulheres em torno de um homem.

A música foi evoluindo e, assim como a cultura e a sociedade, foi tomando novas formas e exercendo  novas funções. Como uma parte da cultura musical que existe no Brasil advém da Europa devido ao processo de invasão e colonização que a América Latina sofreu ao longo de centenas de anos, é válido focarmos inicialmente nesta parte da História, a partir da atuação das mulheres na música clássica, ou erudita.

Muitos compositores eruditos têm seu nome reconhecido por pessoas que nem mesmo tiveram um contato mais profundo com suas músicas, como Mozart, Bach e, talvez, até Schumann. Mas poucos sabem que mulheres de mesmo sobrenome também fizeram parte da história, mas aos poucos foram esquecidas.

Maria Anna Mozart demonstrava, desde pequena, talento musical assombroso, mas foi desincentivada ao estudo conforme foi crescendo e se preparando para o casamento, enquanto seu irmão Wolfgang Amadeus Mozart seguia seus estudos e trabalho. Anna Magdalena Bach, compositora alemã tem o sobrenome lembrado apenas pela fama de seu marido Johann Sebastian Bach, cujas composições são ouvidas e aclamadas até hoje em dia. Clara Schumann foi pianista, mãe e compositora, referência na luta das mulheres na música erudita, uma das poucas cujas obras não foram esquecidas pelo tempo e podem ser encontradas com facilidade.

Olhando para esses fatos, a pianista Jaci Toffano indaga: “Por que Bach e Schumann em vez de Ana Magdalena e Clara? Por que Wolfgang em vez de Maria Anna, e assim por diante? Teria algo a ver com a subordinação própria da relação homem-mulher?”.

Toffano pontua “Maria Anna, ou Nannerl, era irmã de Mozart. Quando crianças, ambos assombravam a todos pela genialidade”

Arte, cultura, sociedade e história se influenciam mutuamente, e não é por acaso que Maria Anna, Ana Magdalena, Clara e tantas outras compositoras tiveram seus sonhos e talentos abafados. Na idade média, com a ascensão da igreja católica, as mulheres eram representadas de forma puritana se assemelhando a Virgem Maria ou Eva. Já no Renascimento, a representação feminina era carregada de realismo, perfeccionismo e erotismo, seja em canções, poemas ou pinturas. O legado destes movimentos artísticos, e de tantos outros que vieram em seguida, influenciou diretamente na imagem da mulher ao longo dos séculos e influencia até hoje.

Em seu texto “A história esquecida da mulher na música”, João-Maria Nabais, médico e escritor, nos traz o panorama limitante que era destinado a mulheres músicas no século XIX: “Até aqui, era crença assente que a mulher não possuía as qualidades emocionais e intelectuais obrigatórias para apreender a luz do conhecimento, sendo até considerada nociva essa mesma aprendizagem, porque podia desviá-la da sua função primacial de mulher e mãe. Além do mais, as mulheres não eram bem aceites, sendo consideradas pessoas pouco dignas, se fizessem parte como solistas ou intérpretes, em espaços onde até aí os homens tradicionalmente dominavam […] para a mulher estava destinada o cuidar da casa, aprender a bordar e costurar, além da educação dos filhos; aquelas poucas que não professassem num convento, o máximo a que podiam aspirar era dar lições de piano aos filhos das elites”.

Maria Anna, Ana Magdalena e Clara, apesar de não pertencerem ao período Renascentista, sofreram as consequências desta visão da mulher que tem como função performar a imagem idealizada que se construiu a seu respeito nas artes e que se mantém até hoje: bela, recatada e do lar.

 

Brasil, Chiquinha e ‘O Abre Alas’

Chiquinha Gonzaga é “a primeira grande entrada, e fulgurante, da mulher na música popular”.

No Brasil, o ensino de música a mulheres estava muitas vezes restrito ao ensino do piano nas elites. Jaci Toffano diz que “[…] as mulheres começaram a tocar piano pois era um instrumento associado ao espaço privado/doméstico”. E não foi diferente para Chiquinha Gonzaga, nascida em 1847 no Rio de Janeiro. Filha de pai marechal do exército e mãe escravizada alforriada, afilhada do Duque de Caxias, Chiquinha teve aula de piano desde cedo e aos 11 anos escreveu sua primeira composição, a música natalina Canção dos Pastores.

Mas Chiquinha, como era de se esperar de uma figura revolucionária na história da música brasileira, não se alimentava apenas de cultura e música europeias, crescendo em meio a rodas de lundu, umbigada e outros ritmos originários do continente africano.

Após um casamento forçado aos 16 anos, Chiquinha se separa de seu marido poucos anos depois por trazer um violão, instrumento associado a camadas mais pobres da sociedade, para casa. Expulsa pela família, buscou diversas formas de se manter financeiramente e criar seu filho mais novo, que se mudou junto com ela. Chiquinha dava aulas de música, sobretudo de piano, e vendia as partituras de suas composições pelas ruas. Ricardo Cravo Albin, musicólogo e historiador, em entrevista à Agência Brasil descreve Chiquinha como uma pioneira em vários aspectos: “É uma pioneira absoluta. É pioneira no feminismo no Brasil. É uma pioneira na música popular. É a primeira grande entrada, e fulgurante, da mulher na música popular. E é uma legenda até hoje. Portanto, a mãe da MPB”.

Mesmo com sua vida profissional e familiar conturbada, sem apoio da família, perdendo a guarda de seus filhos, e por vezes tendo que enfrentar a sabotagem de seu pai ao seu trabalho, Chiquinha Gonzaga não se contentou com pouco. Ela é responsável pela criação da primeira marchinha de carnaval da história, ‘O Abre Alas’, unindo a música tradicionalmente ouvida pela elite durante o carnaval e os batuques tocados pela população em suas comemorações de rua, Chiquinha cria um novo ritmo, adicionando pela primeira vez uma letra a uma música de carnaval.

Alguns outros feitos não podem passar despercebidos em sua vida, como sua contribuição na luta abolicionista. Albin diz que Chiquinha, enquanto uma mulher miscigenada em um país miscigenado, cumpriu seu objetivo de fazer música miscigenada.  Chiquinha Gonzaga foi a primeira maestrina no Brasil numa época onde as mulheres eram proibidas de reger grupos musicais. Produziu cerca de duas mil canções e 77 partituras de peças teatrais. “Compositora e maestrina de sucesso, numa época em que mulher não tinha profissão, ela abriu caminhos e ajudou a definir os rumos da música brasileira” diz Edinha Diniz, biógrafa da compositora. É por estes e outros feitos que o aniversário de Chiquinha Gonzaga marca o Dia da Música Popular Brasileira, em 17 de Outubro.

 

País do samba e das sambistas

As mulheres negras baianas, que chegam ao Rio de Janeiro em torno de 1850, tinham um papel econômico na sociedade brasileira diferente do que era considerado adequado à época. Além de trabalharem fora de casa, traziam uma concepção cultural de independência com relação ao seu próprio corpo. Estas mulheres negras, inclusive a partir de sua religião, eram vistas como mulheres livres, ‘abusadas’ aos olhos da sociedade. São elas que trazem elementos como a ciência, a gastronomia, a liberdade do corpo feminino e os primórdios do samba para a região sudeste. Não coincidentemente, toda escola de samba reserva uma ala exclusiva para homenagear a figura das baianas, mulheres que fizeram com que toda a cultura do samba da atualidade fosse possível.

A ala das baianas surgiu na década de 30 e é obrigatória no desfile de todas as escolas de samba até hoje.

Esta origem do samba traz elementos que o torna significativamente distinto de diversos outros ritmos brasileiros e, para além disso, ressignifica o papel da mulher na música no interior de sua cultura. Cantoras e compositoras de destaque como Leci Brandão, Dona Ivone Lara, Clara Nunes, Alcione, Jovelina Pérola Negra, Beth Carvalho, Clementina de Jesus, entre tantas outras, para além de seu papel musical na propagação do samba, têm raízes fortes e profundas nas escolas de samba e nas comunidades.

O samba tem um papel revolucionário na transmissão da história da população brasileira, o “Brasil real” em suas diversas nuances e dores, para muito além do “Brasil oficial” que é vendido para dentro e para fora do país. A partir de suas críticas humoradas e ritmo alegre é possível encontrar tristeza e denúncia em suas letras, do ponto de vista, principalmente, da população pobre e negra. Na canção “Corda no Pescoço”, por exemplo, Beth Carvalho canta “Mas da fruta que eles gostam / Eu como até o caroço / Tem gosto de marmelada / E o pobre do povo é que leva no dorso”.

Algumas figuras femininas do samba não podem ser esquecidas, como Tia Ciata que desfrutava de certo prestígio político e, assim, conseguiu driblar a lei que enquadrava o samba como ato de ‘vadiagem’, camuflando as rodas de samba ao dizer que o evento era uma cerimônia de terreiro organizada por ela em seu quintal. Tal abordagem foi fundamental para a criação da imagem das damas do samba, ou seja, mulheres essenciais que faziam o samba acontecer a contragosto das autoridades.

A imagem da dama do samba foi se transformando e, com Dona Zica, o samba carioca vai do morro para o asfalto. Ela traz para o samba os temas relativos às dificuldades enfrentadas pela população periférica. Junto com Dona Neuma, Dona Zica foi uma figura de extrema importância na Estação Primeira de Mangueira e, antes de ser esposa de Cartola, ela era ‘a Zica’ que por si só era completa e carregava seu próprio significado.

Dona Zica foi uma das primeiras integrantes da Mangueira e uma das principais pastoras da velha guarda da escola.

A figura das pastoras dentro do samba também deve ser lembrada. As pastoras são cantoras que representam a raiz de uma escola, as matriarcas de um ritmo de origem matriarcal. Os sambas escolhidos devem passar pelo seu crivo e o coro formado pelas suas vozes determinam o caminho a ser seguido pela escola.

Apesar do papel primordial das mulheres na criação, propagação e manutenção da cultura do samba, o mercado musical não aceitou sua presença com facilidade. A cantora e compositora Alcione, no documentário Damas do Samba relata a dificuldade enfrentada pelas mulheres de se inserirem no mercado musical “Mulher não vendia disco. Era quase uma maldição, quando Clara Nunes estourou e vendeu 300 mil discos. Foi a primeira mulher a vender mais discos do que homens […] e aí quebrou esse tabu […] todas as cantoras foram na aba, o mercado se abriu pra gente.”


O mercado musical é um tema bastante profundo que deve ser debatido com atenção. Assim, o Tribuna São Carlense fará uma continuação sobre o assunto tratado nesta matéria focando, desta vez, na cena musical da atualidade.

Enquanto isso, você pode ouvir um pouco do trabalho das mulheres citadas nesta matéria com a playlist que a gente criou!

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REFERÊNCIAS

A história esquecida da mulher na música – João-Maria Nabais

https://hugoribeiro.com.br/biblioteca-digital/Nabais-Historia_Mulher_Musica.pdf

Música e Gênero: a divisão sexual dos instrumentos musicais no contexto da Escola de Música de Brasília – Caio Pinheiro Della Giustina

https://bdm.unb.br/bitstream/10483/18071/1/2017_CaioPinheiroDellaGiustina_tcc.pdf

Feminismo, machismo e música popular brasileira – Manoel P. Ribeiro.

http://publicacoes.unigranrio.edu.br/index.php/reihm/article/view/377/369

A criadora da primeira marchinha de carnaval, Chiquinha Gonzaga – Alana Gandra

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-02/chiquinha-gonzaga

Por que há poucas mulheres na música?

https://medium.com/zumbido/por-que-h%C3%A1-poucas-mulheres-na-m%C3%BAsica-b8b33c581f6c