A pandemia de feminicídios

A pandemia de feminicídios

08/04/2021 Off Por Equipe Tribuna

Os assassinatos de mulheres que aconteceram decorrentes do machismo já tinham uma frequência assustadora no Brasil antes da pandemia. Em 2018 nosso país teve a 5ª maior taxa de feminicídios do mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde. 

Dentre o agravamento da vulnerabilidade social, econômica e sanitária que a pandemia trouxe, encontra-se também a piora na vulnerabilidade das mulheres brasileiras. Em março e abril de 2020 houve um aumento em 22% dos casos de feminicídio no Brasil em relação ao mesmo período do ano anterior, de acordo com relatório publicado pelo  Banco Mundial em conjunto com a Organização das Nações Unidas.

Ao mesmo tempo, o que já não era prioridade para os governos federal e municipais, continua não sendo no período de pandemia. O Instituto de Estudos Socioeconômicos mostra que em 2020 aconteceu o menor investimento que o país fez na última década para combater a violência contra a mulher.

Assim, diversas pesquisas de órgãos de segurança pública têm mostrado que a intensificação dos casos de feminicídio associa-se ao desmanche de políticas públicas que deveriam servir para enfrentar a violência doméstica.

 

Uma mulher morta a cada oito minutos

No Brasil, segundo a Lei 13.104, de 9 de março de 2015, o crime de feminicídio ocorre quando o assassinato é cometido contra a mulher decorrente do fato de ela ser mulher. A lei entende que isso acontece quando o crime envolve violência doméstica e familiar e/ou discriminação à condição de ser mulher.

No Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, as pesquisadoras Amanda Pimentel e Isabela Sobral do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) explicam sobre as circunstâncias do feminicídio: “é muito comum que sejam resultado de violência doméstica, praticado em geral pelo cônjuge ou parceiro, apresentando muitas vezes um histórico de agressões sucessivas, ou casos de menosprezo justamente em relação à condição de mulher. Neste último, o que está em jogo é a questão da discriminação de gênero, geralmente ligada a situações de humilhação e dominação”.

A Organização Mundial da Saúde identificou que em 2018 a cada 8 minutos uma mulher brasileira foi vítima de feminicídio. No caso de mulheres transexuais a situação é vertiginosamente pior: segundo o projeto Trans Murder Monitoring (Monitoramento de Homicídios Trans, em inglês) o Brasil é o país que mais mata mulheres trans há 12 anos.

A advogada e integrante do Coletivo de Advogadas Feministas de São Carlos Eliza Galera Ávila mostra que a vulnerabilidade de mulheres deficientes também reflete na violência doméstica. Na live “Violência institucional contra a mulher em tempos de pandemia”, ocorrida no último dia 30 de março, ela menciona que “18% das vítimas de violência doméstica são mulheres que possuem algum tipo de deficiência” e reflete: “como essas mulheres vão fazer denúncia e boletim de ocorrência? Se as mulheres que conseguem se comunicar através da fala não conseguem ser ouvidas, para as que têm deficiência é mais complicado ainda”. 

Este é um panorama que torna necessária e legítima a existência de leis como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio. Mas apesar das leis específicas para combate à violência contra a mulher, apenas 7,5% dos municípios brasileiros possuem delegacias especializadas para atender mulheres. É um número que encontra-se estagnado desde 2012, segundo o IBGE. 

O Atlas da Violência de 2018, organizado pelo FBSP e pelo Ipea, indicou que “para o enfrentamento da violência contra a mulher, além de dar visibilidade aos crimes, é fundamental a manutenção, a ampliação e o aprimoramento das redes de apoio à mulher, previstos na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/2006), que viabilizam o atendimento e as alternativas de vidas para as mulheres”, concluindo que “muitas mortes poderiam ser evitadas, impedindo o desfecho fatal, caso as mulheres tivessem tido opções concretas e apoio para conseguir sair de um ciclo de violência”.

 

Mulheres que não conseguem continuar vivas na pandemia

O Banco Mundial, em conjunto com a Organização das Nações Unidas, divulgou que as taxas de feminicídio aumentaram substancialmente no mundo todo durante a pandemia. Comparados com o mesmo período de 2019, em março e abril de 2020 houve um aumento em 22% dos casos de feminicídio no Brasil. Entre 2018 e 2019 esse aumento havia sido de 7,1%. 

Ao mesmo tempo, no último ano os registros de lesão corporal dolosa decorrente de violência doméstica tiveram uma redução de 25,5% em nosso país. A diminuição de registros não significa que não houve aumento nos casos de violência doméstica de fato. 

Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, o que aconteceu na realidade foi uma subnotificação: “a presença mais intensa do agressor nos lares constrange a mulher a realizar uma ligação telefônica ou mesmo de dirigir-se às autoridades competentes para comunicar o ocorrido”.

Diante do aumento global dos casos de violência de gênero na pandemia, a ONU destacou cinco recomendações básicas aos governos nacionais: a criação de abrigos temporários para vítimas de violência de gênero, o estabelecimento de serviços de alerta de emergências em supermercados e farmácias, maiores investimentos em organizações da sociedade civil, declaração de abrigos e serviços de atendimento à mulher como essenciais, e o aumento de investimentos em serviços de atendimento online. 

Das cinco recomendações, o governo brasileiro implementou apenas a última, com a criação de aplicativos online para a realização de denúncias e a expansão dos canais de denúncia telefônica. 

Mesmo com dados alarmantes que indicam aumento do risco de vida para as mulheres brasileiras, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos poupou seus recursos. Dos R$120,8 milhões autorizados para o combate à violência contra a mulher no último ano, apenas 24,6% foram utilizados, segundo dados do Instituto de Estudos Socioeconômicos. É o menor investimento da última década.

A escassa distribuição de recursos reflete-se no nível das políticas municipais. Em São Carlos esse é o sexto ano consecutivo em que o Centro de Referência da Mulher segue fechado. A falta de instituições especializadas em combater a violência de gênero reflete no alto risco de morte que as mulheres sofrem. A situação piora em tempos de pandemia, em que elas são obrigadas a conviver mais tempo com o agressor e sem contato com outras pessoas.

A equipe do Tribuna São Carlense recebeu o relato de uma moradora da cidade que precisou lidar com a falta de preparo institucional para lidar com crimes de violência doméstica. Ela diz que desde novembro de 2020 vem ouvindo brigas entre sua vizinha e o marido, nas quais diversas vezes a mulher pedia por socorro. Desde tal período ela tenta denunciar na linha Central de Atendimento à Mulher e na Emergência da Polícia Militar, mas sem sucesso: “todos os lugares falaram que ela mesma precisa fazer a denúncia. Não sei se ela tem condições de fazer a denúncia, se ela está presa em casa ou outra coisa. Tenho todas as provas, ouvi ele batendo nela, vi ele ameaçando ela com arma de fogo, eu tenho provas de que ele é agressivo. Mas ninguém faz nada, ninguém ajuda”.

Entretanto, a advogada Eliza Ávila menciona que o problema vai além da vítima denunciar: “a falta de treinamento dos próprios órgãos para lidar com essas mulheres faz com que a vítima enfrente obstáculos como a demora extrema no atendimento e no próprio andamento do procedimento”. Assim, para a profissional, “há a necessidade de treinamento dos profissionais, de termos delegacias da mulher em todas as cidades, que as delegacias funcionem 24 horas por dia, de termos vagas especializadas no judiciário para esse tipo de processo. É também necessária a readequação estrutural nos locais de atendimento”.

As colocações de Eliza Ávila mostram que a falta de espaços de apoio qualificados para combate à violência doméstica não é um problema novo. A diferença é que agora esse problema se soma à pandemia. É um entrelaçamento que para muitas mulheres é fatal e faz com que elas vivam no limite entre dois riscos de morte. Primeiro, o risco de contaminar-se fora de casa e acabar à espera de um leito de UTI. Segundo, o risco decorrente de ser forçada a conviver ainda mais tempo com um agressor em casa. Assim, para essas mulheres não há espaço seguro: nem a casa, nem os espaços públicos, nem os espaços de acolhimento.

Em meio a esse duplo risco de morte que milhões de mulheres sofrem todos os dias e o dia todo, temos um governo executivo que muitas vezes tem sido acusado de incompetente em lidar com as vulnerabilidades da maioria da população brasileira. Ser incompetente significa tentar e falhar na tentativa. Mas a tentativa nunca aconteceu. A realidade é que governar pela maioria nunca foi interesse desse governo.


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