Novo modelo de distribuição de bolsas prejudica pós-graduação na USP

Novo modelo de distribuição de bolsas prejudica pós-graduação na USP

14/07/2020 Off Por Equipe Tribuna

Os crescentes ataques a trabalhadores e a qualquer possibilidade de soberania tecnológica nacional convergem para destruição das universidades públicas e do principal setor ligado à produção científica: pós-graduandos, que executam cerca de 90% de toda pesquisa científica do país. As bolsas de pós-graduação têm como requisito dedicação exclusiva à pesquisa, mas a falta de regulamentação adequada impede que isso seja visto legalmente como um emprego. Faltam direitos trabalhistas básicos, como férias e décimo-terceiro, a licença maternidade só foi sancionada em 2017 e, além disso, os pagamentos não recebem reajustes desde 2013.

Assim, o trabalho dos pós-graduandos é regulado quase exclusivamente pelo orientador, cenário que propicia várias situações de assédio no contexto acadêmico, largamente produtivista. Nos últimos anos, a situação se agravou com o avanço das medidas de austeridade, sendo 2019 um palco de intensa luta contra corte de bolsas. Em um panorama geral, segundo nota de fevereiro de 2020 da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG), de 300 mil pós-graduandos stricto sensu, pouco mais de 90 mil possuíam bolsas, ou seja, apenas cerca de um terço recebiam por seu trabalho. Um levantamento da Associação de Pós-Graduandos da USP São Carlos (APG USP São Carlos) indica que há programas que somam mais de 20 pós-graduandos sem remuneração no campus de São Carlos da USP, alguns chegam à marca de 40.

Em 2020, o governo federal promoveu mudanças na CAPES e no CNPq, órgãos federais de fomento à ciência a à formação profissional acadêmica, com impacto direto na remuneração de pesquisadores. O novo modelo de concessão de bolsas da CAPES promove uma redistribuição entre os programas de pós-graduação sem a criação de novas bolsas, tirando de um lugar e colocando em outro. Somado aos cortes que vêm acontecendo desde o ano passado, tudo isso faz com que, ainda que alguns programas passem a receber mais bolsas, o número total final seja negativo.  No campus da USP na cidade, dados compilados pela APG USP São Carlos mostram que no início deste ano houve uma redução de 6,9% das bolsas CAPES. Uma vez que a redistribuição é gradual, esse número tende a se agravar nos próximos anos.

O Instituto de Física de São Carlos (IFSC) tem a perspectiva de redução de 45% das bolsas CAPES em até 2 anos. O Prof. Luiz Vitor de Souza Filho, coordenador do programa de pós-graduação em Física do IFSC, explica que os novos critérios de concessão são baseados na quantidade de pessoas tituladas pelos programas, ignorando outros fatores como qualidade do programa e retorno à sociedade. “Ela [CAPES] criou de uma maneira equivocada um estímulo aos programas a aumentarem o número de titulados”, declara Luiz Vitor, e ressalta a importância do IFSC: “É um instituto que tem pesquisas com impacto social direto, e que contribuiu fortemente para o crescimento do parque industrial de São Carlos. Ou seja, um programa que tem feito tudo de acordo com a cartilha, tudo que é reconhecido como positivo para a pesquisa de qualidade.”

Quanto ao CNPq, a forma de concessão será inteiramente reformulada. O formato anterior era similar ao da CAPES, os programas recebiam um montante de bolsas e as distribuíam entre discentes segundos critérios próprios; o que passa a vigorar com as alterações é a concessão direta a pesquisadores por meio de edital. Isso traz insegurança para a manutenção dos programas, que não poderão mais contar com um número certo de bolsas. Quanto às consequências da modificação do modelo, Luiz Vitor declarou que “estão sendo muito radicais, e podem acabar com a pós-graduação a longo prazo! Esse ponto é muito preocupante. Todos os coordenadores concordam que isso é extremamente prejudicial.”   

Essas mudanças, no entanto, não foram recebidas sem fricção pela comunidade científica; a atitude das agências de fomento do governo federal frente aos apelos por revisão do novo modelo vindos de grande parte da comunidade tem se pautado na falta de diálogo, e segundo Luiz Vitor “A CAPES e o CNPq estão decidindo como se não fossem mais vinculadas aos programas de pós-graduação. Elas não escutam mais os programas, não escutam mais os pesquisadores. Estão tomando decisões de uma maneira muito de cima para baixo, sem diálogo”, situação que se coloca como entrave às tentativas de reverter a má gestão da distribuição das bolsas que, como já expresso, terão resultados graves para a pós-graduação e para a ciência como um todo a curto, médio e, de forma mais fatal, a longo prazo.

Não podemos esquecer que por trás da conjuntura está o governo federal, que dita as políticas do MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação) e do MEC (Ministério da Educação), dos quais são subordinados CAPES e CNPq. As ações do governo federal caracterizam, nas palavras do coordenador Luiz Vitor, um “desmanche, que parte de uma visão totalmente ideológica do que se imagina por fazer pesquisa e educação de pós-graduação”, e tal visão não é alinhada com políticas consideradas adequadas, mas são “completamente contrárias a tudo que nós e os países desenvolvidos viemos fazendo até agora”. A pesquisa básica, além da pesquisa aplicada, deve ter espaço para o desenvolvimento e a soberania de qualquer país, o que está sendo ignorado e substituído por investimento único em estudos imediatistas e de curto-prazo: “É um menosprezo por tudo que não é aplicado.[…] É uma falta de sabedoria de como é que funciona o processo científico, que tem que ser múltiplo, variado, multidisciplinar, e tem que abranger e incluir todos os tipos de ciência. Não há como fazer ciência por encomenda.”

Para Bartira Rodrigues Guerra, presidente da APG USP São Carlos, o corte de bolsas representa perda do direito de receber por trabalho prestado. “Você continuaria trabalhando, em qualquer que seja o seu setor, de graça?”, questionou. Os desdobramentos disso, aponta Bartira, são negativos para a sociedade como um todo, e conclui: “O impacto de tudo isso é sentido pela sociedade, se não agora, em algum tempo, pois pesquisas são interrompidas e/ou adiadas por falta de reconhecimento e financiamento. […] Esse tipo de acontecimento só vai parar quando todo mundo entender que país para ser rico deve investir em ciência, com toda sua liberdade e diversidade, e valorizar o(a) professor(a), o(a) pesquisador(a), o(a) cientista!”


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