Por que estudar construções geométricas?

Por que estudar construções geométricas?

15/07/2020 Off Por Editorial Tribuna São Carlense

Por Luciano Rocha

Em outras ocasiões já deixei minha indignação quanto ao deprimente currículo da disciplina de matemática no ensino básico, que busca ensinar coisas “práticas” que ninguém aprende, muito menos utiliza na sua vida. No entanto, em algumas escolas (mais frequentes fora do Brasil, mas ainda assim presentes por aqui) ainda é ensinado algo bastante interessante e relevante (apesar de nem sempre com melhor abordagem) que eu gostaria de discutir a fundo aqui: a construção geométrica.

Construção Geométrica é um ramo da matemática que estuda quando podemos construir objetos geométricos utilizando apenas uma régua não graduada e um compasso e, no caso possível, como essa construção pode ser feita. É claro que podemos construir círculos e retas com esses objetos, mas também é possível construir, por exemplo, um triângulo equilátero, um quadrado ou determinar o ponto médio de um segmento dado (como feito neste vídeo).

À primeira vista, pode parecer que é muito mais útil ensinar crianças a resolver equações do segundo grau do que construir objetos com régua e compasso. Porém, ao analisarmos a construção geométrica do ponto de vista histórico, vemos a sua importância no entendimento do funcionamento da matemática atualmente e, portanto, sua importância didática. Voltemos à Grécia Antiga – com uma ressalva.

 

Gregos

Aqui irei focar na civilização grega pelo simples fato de que foram eles quem influenciaram em maior medida a matemática ocidental como temos agora. No entanto, é importante ressaltar que a empenho na geometria, e até mesmo nas construções geométricas, não começaram com eles – indianos, babilônios e chineses lidavam com questões geométricas popularizadas no ocidente pelos gregos muito antes destes, e isso obviamente tem a ver com racismo na ciência, mas isso é um assunto que pretendo abordar em outro momento.

A construção geométrica era de grande importância na antiguidade para os matemáticos gregos. Euclides já sabia como construir triângulos, quadrados, pentágonos e muitos outros polígonos regulares. Outros tiveram suas construções descobertas apenas no início do século XIX, como a do polígono regular de 17 lados. Existiam três problemas bastante famosos na época que os matemáticos da antiguidade nunca conseguiram solucionar, conhecidos como Os Três Problemas de Construção da Antiguidade. Isso porque, de fato, as construções propostas eram impossíveis de serem feitas, como demonstrado 2000 anos depois.

O primeiro problema era sobre dobrar o volume de um cubo. Isto é, dado um cubo, pretendia-se construir um segundo cubo, utilizando apenas régua e compasso, que possuía o dobro do volume do cubo original. No contexto da Grécia Antiga, esse problema tem origem em uma lenda onde Atenas estava sendo atingida por uma grave praga. Os atenienses então dirigiram-se ao Oráculo em Delos pedindo conselhos sobre como agradar os deuses para que a praga fosse encerrada. Este então orientou que o altar dedicado a Apollo fosse dobrado de tamanho. O altar, que era cúbico, foi modificado e cada um dos seus lados teve seu tamanho dobrado. Mesmo assim, a praga continuou. Ao voltarem ao Oráculo, este disse aos atenienses que, ao dobrar suas dimensões lineares, o tamanho (referindo-se ao volume) do cubo é aumentado em 8 vezes (2 elevado ao cubo). Os atenienses então retomaram o trabalho de tentar realizar o desejo de Apollo e falharam, pois essa construção é impossível como sabemos hoje. 

Dobrar o tamanho de altares cúbicos aparecem em lendas de outras civilizações além da grega, como no Salvasutras indiano, mostrando uma conexão ritualística nesses problemas geométricos. Outra curiosidade sobre o problema é a possibilidade de resolvê-lo se for adicionada a permissão de desenhar parábolas. Na verdade, esse foi o primeiro uso do conceito de parábola conhecido (pois é, elas não surgiram para o estudo de movimentos balísticos ou ótica).

O segundo problema trata-se da quadratura do círculo. Isto é, dado um círculo, pretende-se construir um quadrado de mesma área que o círculo dado. A impossibilidade desta construção só foi provada em 1882. Por fim, o terceiro problema é sobre a trissecção de um ângulo, isto é, dado um ângulo, pretendia-se dividi-lo em três partes iguais. A impossibilidade desta construção foi provada em 1836. Estas demonstrações de impossibilidade estão intimamente ligadas a teoria de Galois, sobre a qual comentamos nesse artigo.

Mas por que os gregos se perguntavam tanto sobre construções geométricas? Provavelmente por causa de Euclides.

 

Euclides

Euclides de Alexandria foi um matemático grego nascido por volta de 300 anos antes de Cristo. Por vezes, é referido como o “Pai da Geometria”. Isso porque ele foi o responsável pela obra matemática de maior impacto na história, Os Elementos. Essa coleção de livros é a segunda obra literária com o maior número de edições no mundo, atrás apenas da Bíblia. 

Tal importância deve-se à sua apresentação lógica e sistemática dos conhecimentos matemáticos até o momento. Através de alguns poucos postulados (isto é, verdades assumidas a priori), Euclides deriva, de forma lógica e com provas rigorosas, resultados bastante profundos. Desta forma, é um livro que ilustra muito bem o fazer matemático. 

Euclides listou cinco postulados sobre os quais a geometria passaria a se apoiar. Os três primeiros deles dizem respeito a construtibilidade e são os seguintes:

  1. É possível construir um segmento de reta ligando dois pontos dados.
  2. Todo segmento de reta pode ser estendido a uma reta.
  3. Dado um segmento de reta, é possível construir um círculo com raio igual ao segmento dado e centro em uma extremidade do segmento.

Analisando esses postulados, é possível ver que a escolha de ter a régua e compasso como únicos objetos “permitidos” para as construções foi diretamente influenciado pelo trabalho de Euclides, que também influenciou diretamente a nossa forma de pensar a ciência. Assim, a construção geométrica expressa como a nossa matemática funciona. É uma forma do aluno experienciar a construção de argumentos a partir de um sistema axiomático simples, utilizando também a sua intuição geométrica. 

Por exemplo, uma vez que um aluno tenha aprendido como bissectar um ângulo (isto é, a partir de um ângulo dado, cortá-lo exatamente ao meio), é possível que ele se pergunte como trissectá-lo – o terceiro problema de construção da antiguidade. Essa é uma excelente oportunidade para ensiná-lo sobre como provar a impossibilidade de afirmações a partir de um sistema axiomático dado. E pode-se ir além! Podemos mostrar como a adição de axiomas pode permitir a demonstração de mais afirmações, como comentado sobre o primeiro problema de construção, onde a adição da possibilidade de construir parábolas nos permite dobrar o volume do cubo. 

Analisando as raízes históricas dessa abordagem, percebemos a importância metodológica das construções geométricas. É urgente a necessidade de inserirmos os contextos históricos na explicação da importância de estudarmos determinados objetos em vez de tentarmos demonstrar tal importância através de aplicações reais que em geral não se concretizam. Afinal, estudar ciência é estudar o pensamento humano, e isso faz-se necessário por si só.

 

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