Mais que números

Mais que números

06/05/2020 Off Por Equipe Tribuna

Por Luciano Rocha

Hoje, 6 de maio, o Brasil bateu o recorde de mortes em um só dia por COVID-19: 615. Com isso, o Brasil soma 125 mil casos confirmados e mais de 8.500 mortos. No entanto, o número total de casos é muito maior, uma vez que a subnotificação está em níveis assustadores. Segundo estudos do Imperial College London, da Inglaterra, o Brasil registra um índice de subnotificação de 90%, ou seja, temos tranquilamente 1 milhão de casos e as projeções futuras são ainda piores. No mundo, já ultrapassamos os 3 milhões e 700 mil casos e 260 mil mortes.

Estamos nos acostumando a lidar diariamente com números, indicadores e gráficos sobre a pandemia. Eles são imprescindíveis pra compreender o que estamos enfrentando para que sejamos capazes de elaborar políticas que nos tirem dessa situação da melhor forma possível. Entretanto, dados e estatísticas, quando sozinhos, podem soar frios e desumanizantes perante a população. Não a toa, instituições de caridade preferem mostrar fotos e histórias em vez de gráficos sobre o impacto de suas ações para alcançar empatia às suas causas e a psicologia indica o sucesso dessa abordagem. É preciso que lembremos diariamente de que cada um daqueles números é uma história, e hoje queria contar uma delas aqui.

Infelizmente, dentre as mortes ainda não notificadas do dia anterior, estava alguém por quem eu tinha um grande carinho. Meu tio-avô, Wilson, faleceu vítima do COVID-19 em Belém do Pará, aos 65 anos. Minha família sempre foi de ficar juntinha. Nascemos e crescemos no mesmo bairro, o da sacramenta, na periferia de Belém. Meu tio foi um dos 14 filhos da minha bisavó e, de longe, o mais engraçado de todos.

Tio Wilson, tia Telma e suas filhas, Giovana e Gláucia.

Todos os domingos entregava uma marmita com peixe cozido na casa da vovó, o que ela adorava. Nas festas, era muito aguardado. Longe de ser o tiozão do pavê, era um exímio contador de estórias com veracidade duvidosa e humor peculiar. Os almoços de Natal eram especialmente gostosos quando ele começava a contar, pela trigésima vez, sobre aquele dia em que meu avô se escondeu atrás da barraquinha de cheiro-verde quando minha bisavó descobriu que ele andava saindo com minha avó. Não podia passar um único dia sem tomar açaí, senão tinha pesadelos com um cavalo correndo atrás dele, segundo o próprio. Era muito fã de Benito di Paula e conhecido pela sua maneira de tomar um copo de cerveja em um único gole – uma especial perda para o Bar do Bigode.

E agora ele se foi. Não sabemos como contar pra minha bisavó, que agora está com 94 anos. Um enterro que, em outra ocasião, seria lotado, foi esvaziado. Abraços não serão dados e as risadas nostálgicas só durarão o tempo de uma ligação. Angústias como essa estão ocorrendo aos montes todos os dias. Ao menos 615 só hoje. Mortes majoritariamente evitáveis, negligenciadas por um sistema econômico genocida.

Estou passando a quarentena isolado aqui em São Carlos, que computam apenas três dos casos fatais. Faço o meu apelo aos sãocarlenses que vejam isso como um indicativo de sucesso da quarentena, reforçando a importância de mantê-la. Não esqueçam que cada um desses dados representa milhares de vidas, de amores, de dores, de risadas. Quem puder, por favor, fique em casa.

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