Lembrar do Borba Gato para não esquecer da violência

Lembrar do Borba Gato para não esquecer da violência

26/08/2021 Off Por admintribuna

por João Neto

A palavra monumento possui dois grupos de significados. Em um, ela fala sobre a lembrança e a memória, no outro, ela diz sobre avisos e projetos de civilização. Quem permitiu a produção de uma estátua possui interesses sobre a manutenção de seu próprio poder e, para projetar o futuro, constrói narrativas sobre seu passado, afetando a sensibilidade da vida presente. Para que as pessoas consumam essas histórias marcadas por violências e dominação, as narrativas passam por processos de eufemização. A figura do bandeirante, fabricada sobre agentes sociais denominados sertanistas, pode se tornar símbolo de progresso independentemente das condições precarizadas sob as quais trabalhavam. 

Apagar um monumento faz parte da produção da história. Grandes símbolos do passado continuam entre nós por meio de relatos, ilustrações ou, até mesmo, dentro de museus. Essas estátuas, por exemplo, consolidam uma noção do passado através do campo científico da história. Porém, a relação entre quem percebe (nós) e aquilo que é percebido (a estátua) funciona em três momentos: o momento em que a estátua foi encomendada, o momento de sua produção e o momento das condições materiais que permitiram o encontro entre nós e a estátua. Colocar uma estátua dentro de um museu altera as formas que permitem que alguém a encontre. Ou seja, a partir do momento em que a estátua vai para o museu, precisamos ir até lá se quisermos vê-la. Isso muda seus significados justamente pelas barreiras invisíveis que separam quem pode ou não entrar num museu. Além disso, as pessoas que são expostas à estátua por estarem no espaço público perdem uma referência cultural de seu contexto cotidiano.

Mas aonde essa referência cultural nos leva? Diretamente a questões como: “quem mandou construir?”, “Com que verba?”, “Quem construiu?”, “Sob quais condições?”. Indiretamente, porém, a estátua aponta para uma ficção, uma história sobre a formação do Estado de São Paulo. Mediante ao fogo, somos convidados a prestar atenção à materialidade do monumento e, ao mesmo tempo, aos valores informados por ele.

A estátua do Borba Gato em Santo Amaro, nesse caso, representa Manuel de Borba Gato, que nasceu em São Paulo no ano de 1649 e morreu em 1718. Ele foi genro de Fernão Dias e, juntos, exploraram riquezas minerais (a mando do rei de Portugal, que visava sanear a crise econômica), partindo em 1674 para os sertões. Após a morte de Fernão Dias, Borba Gato continuou as explorações e em 1682 foi acusado de matar o Superintendente Geral de Minas, Rodrigo de Castelo Branco, e ficou foragido por quinze anos no sertão do Cataguases. Quando Arthur de Sá e Meneses assumiu o cargo de Governador do Brasil, ele perdoou Borba Gato e lhe deu os títulos de Superintendente Geral de Minas e Tenente Geral do Sertão. Anos depois, Borba Gato participou da Guerra dos Emboabas. Essas informações são parte da composição de significados ressaltados por essa estátua. Por outro lado, sua construção data de 1962. Produzida por Júlio Guerra, foi montada com duas colunas de metal proveniente de trilhos de trem, concreto armado e cacos de pedra colorida. Ela possui dez metros de altura e faz parte da formação estética das pessoas que circulam por Santo Amaro.

A materialidade dessa estátua é evidenciada quando, no dia 24 de julho de 2021, o grupo Revolução Periférica coloca fogo e divulga vídeos dessa ação por meio de mídias sociais. O fogo não consome o concreto, mas simboliza um posicionamento político capaz de produzir novos significados relacionados à estátua. O efeito dramático causado pelo incêndio foi registrado e publicado no Instagram, em um vídeo de vinte e sete segundos, com a legenda “FOGO NOS RACISTAS na práxis”. Outras postagens desse perfil questionam o público sobre quem foi Borba Gato. A associação entre essa pergunta e o fogo nos direciona à interpretação do ato: seja quem ele for, merece ser queimado. Esse ato aponta também a capacidade humana de produzir história, a partir da prisão política de Galo, a trama de ações que se desenvolveram e permitiram que novas camadas de leitura se consolidassem sobre a estátua de Borba Gato.

A obra, produzida no começo da década de 1960, representa um bandeirante, figura criada pós-independência do Brasil e valorizada durante a república café-com-leite e, depois, durante a ditadura civil e militar. Eles foram tomados como desbravadores da América Portuguesa, responsáveis por conquistar territórios definidos como espanhóis pelo Tratado de Tordesilhas. O sudeste, porém, era uma região pobre da colônia durante o ciclo econômico da cana-de-açúcar. As bandeiras foram financiadas como forma de resolver a crise econômica por meio de exploração de metais preciosos e escravização de povos originários. Desse modo, não é possível desassociar a imagem de Borba Gato das violências cometidas por seu grupo, para isso são utilizadas estratégias de docilização da mensagem fundadas ideologicamente.

Por conter a camada ideológica, a estátua representa mais a produção contemporânea da classe dominante do que feitos de um passado mítico e heróico. As respostas ao incêndio por parte de canais hegemônicos de comunicação revelam muita sensibilidade aos valores atribuídos à estátua e muito pouca sensibilidade às questões cotidianas da classe trabalhadora. Essa é uma demonstração do processo de lutas de classe que produz novas formas de categorizar o mundo. O ato político destacou um monumento de sua instância local, afetando e sendo afetado por relações sociais internacionais.

A estátua continua em pé, Galo foi liberado de seu cárcere injusto e as revoltas da classe dominada continuam sendo censuradas pelo esquecimento. Mas é por meio dos nossos monumentos que construímos nossa identidade e, quando a estátua é queimada em forma de protestos que temos a chance de converter um símbolo de opressão em símbolos de resistência. As homenagens às figuras históricas são parte da história. A sua subversão, também.