Legado da Reforma de Córdoba para a luta por universidade popular

Legado da Reforma de Córdoba para a luta por universidade popular

30/09/2020 Off Por Colaborador/a

por Antônio Soares

Em tempos de tão pesados ataques à autonomia universitária e de crescimento de uma ofensiva reacionária, tem se tornado mais comum referências à Reforma de Córdoba nos movimentos sociais que compõem nossas universidades. O movimento que se iniciou na cidade argentina de Córdoba em 1918 — e que logo se espalhou pela América Latina — é realmente de grande relevância para a nossa luta de hoje. Mesmo assim, não podemos dizer que é um evento histórico muito conhecido em terras brasileiras. Pelo menos, não ainda. Meu objetivo aqui é resgatar um pouco dessa memória.

Estamos falando do fim dos anos 1910, quando o mundo e a América Latina viviam os desdobramentos imediatos da Primeira Guerra Mundial, da Revolução Mexicana e da Revolução Russa. Tudo isso propiciava um terreno fértil para o surgimento de movimentos de contestação de paradigmas sociais.

Internamente, a Argentina passava por transformações políticas que se expressam, por exemplo, na instituição do voto secreto e na ampliação do sufrágio para todos os homens maiores de idade pela Lei Sáenz Peña, o que leva à eleição de Hipólito Yrigoyen, da União Cívica Radical, como presidente em 1916. No ambiente universitário, o cenário era de um intenso conservadorismo sob domínio da Igreja, e Córdoba — a primeira universidade do país, fundada no século XVI — era a mais reacionária comparada com as outras quatro universidades argentinas (Buenos Aires, La Plata, Santa Fé e Tucumán).

 

Mobilizações iniciais

O movimento estudantil cordobes já dava sinais da sua potência antes de 1918, protestando contra interferências religiosas em atividades acadêmicas e restrições elitistas para o acesso às aulas. Uma linha do tempo no site da própria universidade cita o protesto de estudantes de Medicina contra o fechamento do internato.

Ainda em 1917, estudantes enviam um abaixo assinado ao Ministério de Instrução Pública reivindicando o que hoje é ponto crucial de toda universidade: a liberdade de cátedra. A reivindicação, no entanto, não é atendida e o movimento passa por uma crescente radicalização, tomando as ruas em protestos. Em março de 1918 surge o Comitê Pró-Reforma, que declara greve geral com massiva participação da comunidade estudantil. Logo em seguida nasce a Federação Universitária Argentina (FUA), nacionalizando a luta travada em Córdoba.

Frente a forte mobilização, o presidente Yrigoyen nomeia o interventor José Matienzo, que realiza algumas reformas. Assim se encerra a primeira greve. No entanto, o que pareceu ser o início de um apaziguamento se reverteu em um conflito ainda mais duro quando no dia 15 de junho de 1918 a Assembleia Universitária, onde o estudantes não tinham direito de voto, elege como novo reitor Antonio Nores, ligado a grupos conservadores e clericais.

Neste ponto, estudantes interrompem a cerimônia da Assembleia Universitária e declaram nova greve. A partir disso, o movimento passa a adotar práticas mais diretas, como a depredação, para que suas demandas sejam ouvidas, entrando inclusive em confronto com a polícia. Surge, então, a Federação Universitária de Córdoba (FUC), presidida por Enrique Barros, clamando a renúncia de Nores.

   

O Manifesto

A nova greve rapidamente se expandiu e as mobilizações passaram a contar com trabalhadores, a exemplo da Federação Operária de Córdoba, e intelectuais, como é o caso de José Ingenieros. O movimento se massifica e se nacionaliza. Em 21 de junho de 1918, começa a ser divulgado o Manifesto Liminar, escrito por Deodoro Roca e assinado também por dirigentes da FUC.

“Da juventude argentina de Córdoba aos homens livres da América do Sul”, é o que acompanha título do Manifesto Liminar. Em todo o texto, fica claro que as pautas do movimento iam além de meras questões administrativas locais da Universidade de Córdoba, mas abarcavam um projeto político de cunho internacionalista que abrangia toda a América Latina. No primeiro parágrafo, o manifesto constata: “estamos pisando sobre uma revolução, estamos vivendo uma hora americana.”

Outro elemento marcante do manifesto é a alegação do papel histórico da juventude como canalizadora de transformações sócio-políticas, de rompimento com o passado  de dominação colonial e o presente de dominação imperialista. Os eventos anteriores ao texto são tratados como “o nascimento de uma verdadeira revolução que há de agrupar bem rápido sob sua bandeira a todos os homens livres do continente.”

No centenário da Reforma, o Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES) publicou um folheto com uma versão bilíngue do Manifesto Liminar que pode ser acessado clicando aqui.

 

Impactos pelo continente

O I Congresso Nacional de Estudantes Argentinos foi realizado em julho de 1918 e sistematizou as reivindicações que já estavam presentes no manifesto de junho. Os principais pontos giravam em torno da democratização da universidade, seja no que diz respeito a estrutura interna (administração paritária e autonomia universitária), seja no que diz respeito a acesso e permanência estudantil (assistência social para estudantes), e até mesmo quanto ao que é produzido no ambiente universitário (extensão universitária).

Após a renúncia do reitor Antonio Nores, estudantes tomam a universidade e passam a controlá-la até que Yrigoyen nomeia o ministro da educação, José Salinas, como interventor para executar o projeto de reforma idealizado pela comunidade estudantil. Por fim, as demais universidades da Argentina passam por reformulações similares até 1921. É nesse contexto de transformações que nasce, em 1919, a Universidade Nacional do Litoral, que se reivindica como filha do movimento reformista de 1918.

A experiência argentina ecoou pela América Latina, reverberando fortemente no Peru. Uma série de protestos realizados por estudantes e trabalhadores peruanos em 1919 culmina em reformas universitárias nos moldes do que fez em Córdoba.

Buscando radicalizar ainda mais as conquistas alcançadas, a Federação dos Estudantes do Peru implementa em 1921, sob tutela de Haya de La Torre, o projeto Universidade Popular, que tinha por objetivo a realização de uma universidade voltada para a classe trabalhadora, de maneira a democratizar o ensino e elevar a consciência crítica das camadas mais baixas da população. O jornalista, sociólogo e militante José Carlos Mariátegui integrou o quadro docente da Universidade Popular Gonzales Prada, em Lima. No mesmo período, surge também em Cuba um projeto de universidade popular, a chamada Universidade Popular José Martí, encabeçada por Júlio Mella.

No Brasil, nessa época, não existiam universidades consolidadas. Apesar do surgimento oficial de algumas universidades brasileiras antes mesmo de 1920, como a Universidade de Manaus (ou Escola Universitária de Manáos), o modelo universitário só se efetivou aqui nos anos 1930.

Mas a universidade que conhecemos hoje no Brasil, apoiada sobre o chamado tripé de ensino, pesquisa e extensão, é herança da luta travada na Argentina, no Peru, em Cuba… Tivemos — e ainda temos — nossas próprias batalhas, mas elas se desenvolveram no fluxo histórico que tem os eventos aqui descritos como importante peça. Nenhum avanço nunca nos foi dado de graça. Por trás, sempre há luta de mulheres e homens que ousaram desafiar o antigo e romper com o novo.

A cada dia se faz mais necessária uma luta radical por uma universidade popular. Um evento histórico como a Reforma de Córdoba, em que a comunidade universitária em conjunto com trabalhadores mostraram força e conquistaram grandes avanços, além de fonte de inspiração, é fonte de aprendizado. Relembremos para que possamos aprender com suas limitações e com suas aspirações.


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