Em memória aos trabalhadores e trabalhadoras que nos foram arrancados por uma pandemia genocida

Em memória aos trabalhadores e trabalhadoras que nos foram arrancados por uma pandemia genocida

21/06/2021 Off Por admintribuna

Faleceu na última terça-feira (15) Tarsis de Castro Moreti, 38 anos, motoboy que residia e trabalhava na cidade de São Carlos (SP). Como consequência da falta de ações para ampliar o acesso à vacinação contra a covid-19 e com a falta de direitos trabalhistas, Tarsis é mais um dos motoboys vítimas da doença no município. 

Neste cenário, em nossa cidade, a pandemia segue fazendo novas vítimas. Até a tarde de ontem (20), de  acordo com informações divulgadas pelo Subcomitê Emergencial de Combate ao Coronavírus, o número de óbitos por covid-19 registrados na cidade era de 410 pessoas. A situação é agravada pela taxa de ocupação dos leitos de UTI destinados ao tratamento da doença, que atingiu a marca de 97%, desde a última quinta-feira (17).

A situação dos motoboys é ainda mais crítica, por eles executarem um trabalho que exige alta circulação. Soma-se a isto a falta de regulação sobre o trabalho dos entregadores, que não têm garantia nenhuma de férias, aposentadoria ou segurança. 

Tarsis conhecia as condições que dificultavam a sua sobrevivência e a de seus companheiros de trabalho. Por isso escreveu uma carta, enviada a um de seus colegas, para caso viesse a falecer.

Em memória ao companheiro Tarsis e a todas e todos os trabalhadores vítimas dessa doença, publicamos na íntegra o texto escrito por ele, encaminhado através de seus companheiros e companheiras de trabalho. 

 

 

Antes de me criticar pelo meu texto, procure entender meu ponto de vista.

 

Veja:

Trabalhei algum tempo com a Vida. 

Na área da Saúde.

Pronto Socorro, SAMU, Centro Cirúrgico, Hospital Infantil, UTI, Isolamento, Hospital do Coração…

E ali, lidei um pouco com a Morte.

Pouco, confesso, mas o suficiente para me marcar com certa precisão.

 

Trabalhei algum tempo com a Morte. 

Em uma funerária. 

E ali lidei um pouco com a Vida.

Pouco, confesso, mas o suficiente para me marcar com certo grau de profundidade.

 

Entenda:

Na área da Saúde, pacientes, às vezes, por complicações do quadro, vêm a óbito, mesmo estando no hospital para ter a saúde e seus sinais vitais estabilizados. E nesse momento, você, profissional da área é obrigado a lidar com a Morte.

 

Já, no serviço funerário, você não interage com os falecidos clientes, mas sim, com os parentes que acionam os serviços fúnebres. E aí, você lida com a Vida.

 

Hoje, trabalho em uma situação de risco elevado.

 

Atuo no trânsito fazendo entregas.

Convivo com motoristas desatentos, distraídos, desconcentrados, preocupados, com pressa, e inconsequentes. 

Com veículos em péssimas condições de manutenção, vazando fluídos e soltando peças pela via, e sem o devido cuidado e atenção de seus condutores.

 

Me espreito por vias esburacadas, mal pavimentadas, escorregadias, mal sinalizadas, e ando por regiões perigosas, com risco de assalto, ou latrocínio, e em horários de risco com pouco efetivo policial nas ruas.

 

E, de algumas semanas para cá, ao passar por situações de risco ou quase acidentes, esses pensamentos vieram à tona…

De forma intensa e marcante.

 

À cada esquina que percorro, à cada fechada no trânsito, cada vez que alguém cruza o pare ou o farol vermelho na minha frente de forma brusca e repentina, ou quando desvio de um pedaço ressolado de pneu de caminhão na rodovia, me vem o seguinte pensamento:

 

“…eu, sendo motoboy, tenho uma grande probabilidade de que minha partida será por acidente de trânsito,… e, provavelmente será em uma dessas ruas… eu irei ao solo em decorrência de algum sinistro, e ali, ou à caminho do Hospital, ou em cirurgia, talvez, irei à óbito.

Também lidamos com o Covid diretamente, que as pessoas insistem em ignorar, já que raramente vemos um cliente de máscara vir receber sua marmita ou lanche.

(O que deveria ser regra virou excessão.)”.

Algumas enfermidades já são congênitas ou hereditárias. Aí não há o que fazer.

 

De 2018 para cá, perdi 23 amigos de profissão, por acidentes nas ruas, na rodovia, por complicações de enfermidades pré existentes, por tentar resistir a um assalto, e pelo Vírus Covid.

 

A morte é a única certeza que temos

E ela vem sem avisar.

Da forma mais inesperada…

Ela só nos leva…

Em um momento ainda estamos ali, e após aquele suspiro dificultoso, já não estamos mais.

 

…então não terei tempo de me despedir:

da minha pequena filha amada, 

da mulher que amo, 

da minha mãe, 

do meu irmão, 

nem de ninguém… 

 

Naquele dia, só sairemos para trabalhar…

 

…então, me despeço aqui nesse mini testamento.

 

Filha, viva a vida, sinta, experiencie, aprecie os momentos, sejam amargos ou prazerosos. 

A vida é a junção de todos eles. 

Não é só boa nem inteira ruim. 

Procure compreender e apreciar a plenitude das variáveis. 

Um céu azul é bonito, mas aprenda a enchergar a beleza e melancolia charmosa do dia nublado ou chuvoso.

Não procure o sentido ou propósito da vida. Desfrute da oportunidade de criar o seu próprio sentido, e atribuir seu próprio propósito. 

Essa é a beleza do livre-arbítrio.

E não se permita abater, pois nada é permanente. Uma hora, tudo passa. Só meu amor será eterno.

 

Neguinha, obrigado pela sua presença.

Sua energia foi tão intensa que me trouxe paz naqueles momentos complicados em que me encontrava.

Você me curou as feridas e me trouxe vida.

Aqueceu e cicatrizou meu coração dilacerado.

E me fez confiar novamente.

Obrigado por me permitir conhecer parte desse intrigante Universo particular que é você. 

Obrigado por toda reciprocidade de sentimento. 

Eu senti e sinto ele intensamente. 

E é maravilhoso.

Continue sempre sendo essa Princesa Guerreira Fodona que você é.

Te admiro demais.

Nos encontraremos por aí…

Em uma outra forma, talvez. 

Pois aqui, tudo se transforma, e sempre seremos parte do todo. Te amo

 

Mãe. Se cuida, tá.

Essa não é uma despedida…

Não, eu não voltei a ter crises de choro, nem variações bruscas de humor…

Estou bem melhor.

Não se preocupe à esse ponto.

Posso parecer um pouco louco com essas palavras e essa barba gigante que não para de crescer, mas estou sendo apenas realista.

Essa situação tem me incomodado bastante e eu vi nesse texto, uma forma de aliviar essa angústia que me dá, quando estou trabalhando e passo por algo arriscado.

Entenda, quando saio para trabalhar, eu nunca sei se poderei retornar pra casa no final do dia. 

Infelizmente, esse não é um direito assegurado a nós mais.

Por isso, sempre digo “À Paz de Deus”, pois sei que essas são as palavras que teu coração deseja lembrar como sendo minhas últimas.

Só quero que fiques ciente de que tomo todo cuidado sempre. 

Sempre uso máscara, evito contatos físicos, sempre com álcool gel na bolsa, e, no trânsito, sempre cuidando por mim e pelos outros com atenção redobrada nos deslocamentos.

Então, lembre-se que te amo. Obrigado por tudo em todos os momentos.

 

Irmão, obrigado.

Pela companhia, pela infância, pela cumplicidade, pelos momentos mágicos, pelas brincadeiras, pelas conversas, pelo carinho e companheirismo. Por todo o apoio nos momentos difíceis, e pelo amor. Cara, sei que vai parecer clichê, mas te amo, maninho. Te admiro demais.

 

Amigos, obrigado por todos os momentos vividos. Os quais transformei em lembranças e guardo com carinho.

Amigos dos tempos de escola, 

Parentes distantes e primos,

Amigos das viagens e encontros de moto, Amigos dos acampamentos, 

Colegas de trabalho, das pescarias, das reuniões de família e confraternizações.

Ivan, cuida bem da mãe. 

E obrigado pelo carinho e respeito que teve para conosco.

Uma excelente vida à todos vocês.

Aproveitem, ela passa rápido. 

 

Pronto. Espero ficar idoso, com meus 98 anos e a trança da barba bem grisalha até o umbigo, para adquirir muito conhecimento e ler muuuitos livros na minha varanda florida com o canto dos pássaros e o som do vento.

 

Mas, se não for possível, ficam aqui minhas considerações finais…