Dedo na boca dos outros é refresco

Dedo na boca dos outros é refresco

12/08/2020 Off Por Equipe Tribuna

Mais um mural de quem assina com um único nome: Luciano. Tem 22 anos, mora no Centro e escreveu uma história baseada em fatos reais da própria vida.


Dedo na boca dos outros é refresco (Luciano)

Joana e Carlinhos formam um daqueles casais que nos fazem acreditar que comédias românticas hollywoodianas podem acontecer na vida real. Ele, um arquiteto recém-formado, mudou-se para trabalhar no Rio de Janeiro e na primeira sexta-feira na Lapa apaixonou-se pela garota da mesa ao lado que advogava de forma acintosa pela ampliação da malha metroviária da capital fluminense. Era Joana. Duas rodadas de cerveja depois, tomou coragem, fez algum gracejo sobre seus olhos que foi positivamente recebido com o sorriso mais belo que Carlinhos jamais teria visto. Ela, carioca da gema, estava comemorando seu primeiro cachê como baixista em uma banda de afrobeat. Além da paixão por mobilidade urbana, ambos compartilhavam o gosto por praias. Joana não perdia uma oportunidade de descer o Vidigal a caminho de Ipanema. E a cada minuto descobriam mais afinidades. Por fim, trocaram números e telefonaram-se. Disso seguiram-se muitos fins de tarde em Joá, passeios pela Supervia e planos pela frente. Depois de dois anos de namoro, resolveram morar juntos. Conseguiram um aluguel baratinho no Vidigal e juntaram as meias. Joana tinha a impressão que podia confiar a vida em Carlinhos. Carlinhos tinha a mesma impressão quanto a Joana. Mas em uma quinta-feira de janeiro, as coisas mudaram.

A noite carioca reinava sob um calor de trinta e quatro graus. Às dez da noite, já na cama, o casal discutia a possibilidade de adquirirem um ar condicionado, pois o ventilador de teto já não era suficiente. A ideia ficava mais interessante sob a possibilidade de uma ligação clandestina sugerida por Joana e entusiasticamente aceita por Carlinhos. Às dez e vinte, exausta, Joana deixou escapar um bocejo. Ágil como um falcão-peregrino, Carlinhos a surpreendeu com um ato pelo qual se arrependeria de maneira quase imediata. Após vinte segundos, Joana quebrou o silêncio.

— O que você acabou de fazer?
— Coloquei o dedo na sua boca.
— Enquanto eu bocejava?
— Sim, nunca brincou disso?
— Claro que já, quando tinha 10 anos.

Carlinhos também estava exausto de um dia de trabalho. Como ele bem sabia por algum motivo que sempre esquecia de pesquisar na internet, a vontade de bocejar é extremamente contagiosa. Não demorou para que ele o fizesse. No entanto, imaginando uma vingança de Joana, comprimiu os músculos e não conseguiu bocejar com a qualidade que gostaria. Joana apenas o observou com olhos fixos em sua boca.

— Achei que você colocaria o dedo na minha boca.
— Ainda não…

Carlinhos nunca havia visto aquele sorriso de canto antes. Estremeceu. Ao ensaiar um segundo bocejo, percebeu um gesto contido de Joana, que o fez desistir.

— Você ia colocar o dedo na minha boca?
— Não. Seria fácil demais. A tensão de não saber quando virá é bem pior.
— Pelo amor de Deus, mete o dedo na minha boca logo!
— Estou no meu direito de fazer quando eu quiser, se quiser.

Viraram-se e dormiram. Ambos não dormiram bem naquela noite. De alguma forma, eles sabiam que algo havia mudado para sempre.

No dia seguinte, após uma noite de reflexões, Joana decidiu acabar com o martírio de Carlinhos. Ela fez seu primeiro show na Fundição e foi um sucesso. Carlinhos estava lá para assistir e gostou bastante do que viu. Para comemorar, brindaram com caipirinha, tradição do casal. Joana sabia quando a embriaguez eufórica de Carlinhos estava prestes a dar lugar ao sono. Já, já ele iria abrir seu primeiro bocejo e ela queria estar perto. No entanto, ele também sabia e procurou não ficar tão perto assim de Joana. Mesmo assim, o bocejo veio e Joana conseguiu o que queria com um golpe rápido e arriscado. Infelizmente, por efeito do álcool, acabou enfiando o dedo na garganta de Carlinhos, o fazendo ter um engasgo seguido de uma crise de tosse. Ela riu e disse que agora estavam quites. Carlinhos discordava, pois advogava que o golpe dela foi muito mais agressivo e ele saiu prejudicado. Os protestos de Joana fizeram Carlinhos desconfiar do senso de justiça de Joana e, para manter o seu, resolveu seguir sua consciência. Resolveu aproveitar muito bem a chance que tinha dado a si.

Ela achou ter sido ouvida. Carlinhos não faria isso com ela. Não quebraria sua confiança. Ou quebraria? Passou o sábado inteiro com isso na cabeça. Resolveu adiar a viagem que fariam à Bahia, alegando que eles precisavam garantir uma poupança mais robusta para imprevistos. Carlinhos concordou e sentiu um alívio, que ele não conseguia identificar de onde vinha.

Evitavam-se o dia inteiro, e quando não era possível, o clima ficava tenso. Carlinhos passou a dormir na sala, alegando que sua rinite não estava aguentando aquele velho colchão. Joana concordou e sentiu um alívio, que não conseguia identificar de onde vinha. Ficaram uma semana sem bocejar perto um do outro, reprimindo qualquer indício.

Em uma tarde de domingo, foram jantar juntos. Cada um preparando a própria comida. Melhor não arriscar. Ao esticar-se para alcançar o molho para saladas, Joana esbarrou em um copo de vidro que caiu e trincou.

— Acho que dá pra consertar ainda — disse Carlinhos.

Nesse momento, eles se entreolharam e tiveram a mesma epifania: fodam-se os ditados populares. Fazia parte do jogo de copos preferido do casal, que compraram quando foram morar juntos. Brindaram caipirinhas e tomaram deliciosos sucos ali. Resolveram pegar a Silver Tape na caixa de ferramentas e fizeram o remendo. Parecia bom e eles só podiam esperar que durasse bastante. Por via das dúvidas, separaram a conta conjunta.


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