Problemáticas em torno da implementação do Ensino Remoto em São Carlos

Problemáticas em torno da implementação do Ensino Remoto em São Carlos

18/08/2020 Off Por Equipe Tribuna

A suspensão das aulas presenciais em função da epidemia do novo coronavírus trouxe a questão do ensino à distância para o centro do debate sobre educação. Do ensino infantil ao superior, o modelo de aulas remotas foi adotado como solução emergencial inicialmente de forma temporária, mas aos poucos foi forçado como um novo paradigma educacional mais moderno e eficaz. 

Para entender melhor como esse processo está ocorrendo na cidade, conversamos com Joelson Gonçalves de Carvalho, professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e com José Lucas, professor de sociologia na rede estadual de ensino básico. 

Segundo Joelson, a gestão da UFSCar acertadamente decidiu suspender o calendário acadêmico. “Essa decisão, em certa medida, passou direta ou indiretamente por uma discussão interna e foi acertada, na minha avaliação, em função do contexto político e sanitário em que nós estamos”.

No entanto, há diversas dúvidas sobre a volta do calendário. “Hoje estamos em uma discussão sobre ensino à distância e ensino remoto para o contexto emergencial. E essas coisas não estão claras, nem pra mim, nem pra maior parte da Universidade de São Carlos. Em certa medida, foi passado para as diversas coordenações e chefias de departamento uma discussão da importância da regulamentação do ensino à distância na UFSCar. É óbvio que o motivo está dado, estamos numa pandemia e precisamos de uma legitimidade institucional, legal e jurídica para que as coisas que aconteçam virtualmente sejam validadas. O problema é que a gente está discutindo uma regulamentação de ensino à distância, e não necessariamente o ensino remoto em um contexto emergencial. Ensino remoto e ensino à distância são coisas completamente diferentes.” 

De fato, são coisas diferentes. O ensino remoto é uma prática pouco estruturada adotada em caráter de emergência, enquanto o Ensino à Distância é um modelo completo de ensino que requer uma reformulação de currículos, práticas pedagógicas, material de ensino e avaliações. 

Joelson afirma que consultas aos departamento estão sendo feitas para levantar a discussão sobre que caminho tomar, citando com exemplo uma minuta da reitoria. “Eu, como membro do colegiado de cursos de graduação em Ciências Sociais, tive acesso à minuta e pude, junto com meus colegas de conselho, discutir e criticar, e nossas discussões e críticas subiram”. Ele declara que, no conteúdo desta minuta, o que está sendo pautado é a regulamentação do ensino à distância. Reforça que é preciso discutir o ensino remoto emergencial e, mesmo assim, é preciso fazê-lo pautado em um amplo debate com a comunidade discente e estabelecer critérios claros para que nenhum aluno em situação vulnerável saia prejudicado. 

Quando questionado se ele acredita que os alunos estão participando das discussões, o professor pontua que muitos alunos estão mobilizados discutindo, mas nem de longe eles são a maioria. Essas iniciativas surgem especialmente de alguns grupos organizados em centro acadêmicos.

Inúmeras instituições de ensino não dão suporte aos professores para que estes se formem enquanto educadores à distância. Segundo pesquisa do Instituto Península, oito em cada dez professores não se sentem preparados para ministrar aulas online. Joelson está entre eles: “Eu, mesmo tendo toda a boa vontade do mundo e acesso total a todos os alunos e alunas, não me vejo preparado para o ensino remoto ou à distância. Por quê? Porque não tive formação suficiente para tanto. Além disso, a depender das características na qual esse ensino vai acontecer, não sei se eu teria equipamento suficiente para dar conta do recado uma vez que, nesse quesito, todas as despesas adicionais, a priori, se nada mudar, recaem ao docente”.

José Lucas dá um panorama sobre a situação na rede estadual de ensino básico. Ele afirma que já trabalhou em situações excepcionais, como em unidades prisionais e no Ensino para Jovens e Adultos (EJA). Nesses casos, há uma jornada adicional de trabalho que é remunerada pelo Estado. No entanto, no caso do teletrabalho, como ele se refere, isso não ocorre. “Antes eu preparava minhas aulas, as dava e cumpria as burocracias, tudo isto dentro da minha carga horária remunerada. Havia tempo separado para isto. Agora, eu tenho uma carga de trabalho adicional que envolve toda uma mídia que eu não tinha disponível e precisei criar, preciso lidar com toda uma rede de comunicações e burocracias adicionais. A interação com os alunos fica severamente prejudicada, muitas vezes lidamos com os pais dos alunos que mediam a comunicação dos mais novos. Basicamente, agora não tem mais carga horária. Todo horário disponível precisa ser dedicado ao teletrabalho.”

O professor afirma que, por mais que nenhuma dessas cargas adicionais seja particularmente estressante para ele, ao final do dia, torna-se um acúmulo que o leva ao esgotamento, com a ciência de que mesmo com todo o esforço, não fez um bom trabalho pedagógico. “A sensação que tenho é a de Sísifo carregando a rocha para cima e a vendo rolar para baixo no final.”

Defensores dessa modernização também apelam para uma diferenciação entre Educação à Distância (EaD) e ensino remoto. Embora tal diferenciação possa colaborar na disputa para que o primeiro modelo não seja implementado para além do contexto da pandemia, tais defensores a fazem com o movimento duplo de blindar a EaD às críticas sofridas pelo sistema caótico e improvisado de aulas virtuais atualmente em vigor e promovê-la como a melhor solução a ser implementada pelas instituições de ensino públicas e privadas. Para compreender melhor o jogo de interesses envolvidos nessa pauta, é preciso entender que grupos políticos estão por trás disso.

Tomemos como breve exemplo uma das organizações mais expressivas nos debates sobre educação hoje, o Todos Pela Educação, fundada em 2006. Já em 2007 sua influência política estava bem estabelecida, guiando ações do governo federal. Apesar de se colocar como “organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, plural, suprapartidária e independente”, o renomado filósofo e pedagogo Demerval Saviani coloca o movimento como um “aglomerado de grupos empresariais”, que vão desde o Itaú até a Fundação Lemann, de Jorge Paulo Lemann, o homem mais rico do Brasil com uma fortuna de mais de 100 bilhões de reais, que não por acaso investe em plataformas virtuais de ensino. 

Vale ressaltar que a abordagem de Lemann para os problemas da educação é permeada por uma concepção mercadológica, pautada muitas vezes em índices rasteiros, com análises que tratam educação apenas pelo aspecto de formação de força de trabalho. Suas soluções são produtos e serviços a serem comprados pelo Estado, como é o caso da EaD. Em entrevista, Lemann afirma que vê na atual crise sanitária uma oportunidade de expansão de seus negócios no ramo educacional e sugere que o Estado implemente infraestrutura para comprar seu produto.

Neste exemplo, encontramos a mesma lógica desastrosa que vem sendo aplicada à saúde, a de privatização gradual por meio do aumento da participação de empresas privadas e seus representantes, direta ou indiretamente, na gestão da coisa pública e da contratação de serviços pelo Estado, enfraquecendo o setor público e fortalecendo o privado monopolista. É um péssimo sintoma da nossa sociedade que em matéria de educação, uma única pessoa, bilionária e que lucra com a mercantilização da mesma, tenha mais influência na mídia e no governo do que a toda a comunidade escolar e universitária, que não se resume aos estudantes, mas também aos pais, professores e demais trabalhadores de escolas e universidades.

 

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