A importância de expor e responder às violências raciais: Nossos passos vêm de longe e não vão nos parar
06/08/2019escrito por Gabriela Nunes*
No dia 10 de julho de 2019 os noticiários da região divulgaram a denúncia de que na Secretaria da Pessoa com Deficiência e Mobilidade Reduzida da cidade de São Carlos uma diretora foi protagonista de episódios de injúria racial no local de trabalho, onde falava que “uma nuvem negra pairou sobre a secretaria” se referindo à uma funcionária negra da secretaria. A mesma diretora ainda disse que “local de negro é na sala isolada”, deixando uma funcionária terceirizada negra em uma sala fechada para que ela não tivesse contato com as outras pessoas. A funcionária acusada de praticar tais injúrias é irmã de um ex-vereador do município e funcionária comissionada desde a década de 1990. Acompanhando os comentários sobre o caso, muitas pessoas saem em defesa da funcionária comissionada por a conhecerem, por ela ser funcionária de uma secretaria que se propõe a ser inclusiva, mas as vítimas dos comentários racistas apresentaram ao lavrar o boletim de ocorrência gravações de episódios a confirmar a injúria e assédio moral.
Faz-se importante analisar de forma ampla essa história, pois ela é reflexo de uma cultura marcadamente racista que cada dia mais está sendo colocada em cheque pelos movimentos sociais de luta antirracista. Não haverá lugar de conforto para as pessoas que não souberem respeitar as pessoas em suas diferenças.
No livro “Da Senzala para onde? Negros e negras no pós abolição em São Carlos – SP (1880-1910)” lançado pela Fundação Pró-memória de São Carlos em novembro de 2018, a cientista social e pós graduada em Arquitetura e Urbanismo Dra. Joana D’Arc de Oliveira, Professora colaboradora no IAU-USP, aponta entre outras coisas, como as pessoas negras foram agentes de seus processos de libertação/ alforria e suas estratégias pós-abolição da escravatura em São Carlos. Joana analisa processos criminais, dados de recenseamento e apresenta entrevistas com pessoas negras que tem memória de seus mais velhos ou ainda de suas próprias experiências de vida na primeira metade do século, de como a cidade foi desenhada e construída e como a questão racial sendo fundante, mesmo que o discurso oficial não assumisse. No decorrer do livro é possível perceber que muitas vezes as pessoas negras foram subestimadas, desrespeitadas e os bairros em que foi possível construir e povoar estigmatizados. Nas relações interpessoais muitos relatos apareciam como a questão do respeito ao nome era negligenciada, onde as pessoas eram tidas como “negrinhos” ou seu nome/ identidade não eram considerados. Observando que pouco mais de um século transcorreu entre os fatos relatados no livro e o nosso dia a dia, podemos perceber que alguns hábitos racistas permanecem naturalizados para alguns grupos na cidade. Posturas preconceituosas, constrangedoras e cruéis que podem ser lidas como “brincadeiras” precisam ser tomadas como o que elas verdadeiramente são: agressões e violências passíveis de punições compatíveis.
Em conversa com pessoas não brancas é possível ter relatos quase cotidianos de injúrias raciais e racismo que rondam suas vidas e subjetividades desde a mais tenra idade, mas com o avanço da luta dos movimentos identitários comprometidos com a possibilidade da convivência da diversidade com dignidade é possível perceber de forma mais frequente as respostas individuais e coletivas à esses episódios e certamente a abertura do inquérito na Delegacia de Defesa da Mulher de São Carlos e a recente exoneração da funcionária em questão deixa nítido qual o papel de todos para a construção de uma sociedade onde o conceito de humanidade possa ser estendido à todas as pessoas.
Na cidade mais uma mobilização do movimento na cidade, onde foi organizada uma roda de conversa com membros da OAB para dialogar sobre o caso no Centro de Cultura Afro- Brasileira Odette dos Santos e ainda um ato no centro da cidade para reforçar a denúncia e exigir posicionamento efetivo por parte da prefeitura em relação ao caso. Historicamente a mobilização sobre as questões raciais na cidade são recorrentes e é preciso dar visibilidade para os casos de racismo e principalmente às respostas coletivas organizadas.
A autora portuguesa Grada Kilomba, em uma entrevista ao jornal A Tarde em 2017, apresenta que o passado colonial brasileiro é uma ferida infectada que vez ou outra sangra e precisamos fazer curativos esporádicos. Considerando o fato na nossa cidade, é provável que a funcionária comissionada em atividade no serviço público há anos agiu dessa maneira e foi denunciada, e que provavelmente em outros departamentos e locais de trabalho podem ter acontecido coisas parecidas, e nesses casos a resposta ter sido o silêncio. Espero que a postura das funcionárias que sofreram as injúrias e responderam à altura seja adotada por toda e qualquer pessoa que se sinta constrangida em seu direito de existir como é.
Em um texto de 1977 a escritora feminista Audre Lorde aponta no texto “A transformação do silêncio em linguagem e ação” que em muitos momentos adotamos o silêncio como resposta ao conjunto de situações de dificuldade que passamos em nossas vidas ,e ela afirma de forma categórica que “o silêncio não tem me protegido e tampouco te protegerá a vocês.” O silêncio acaba sendo o maior aliado de quem agride do que quem enfrenta as violências. Que possamos libertar nossas vozes e fazê-las ecoar!
*Gabriela é graduanda em Ciência Sociais na Universidade Federal de São Carlos
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