As minas do rap são-carlense

As minas do rap são-carlense

14/03/2021 Off Por Equipe Tribuna

Com sua efervescente cena cultural, São Carlos abriga diversas mulheres que projetam as vozes de outras milhares através do rap

 

O hip hop nasceu e cresceu nas camadas populares, em meio a choques de raça, classe, gênero, sexualidade, geografia e todo tipo de contradição a qual essas camadas são expostas. Desta forma, o hip hop não constitui apenas um espaço de lazer, mas também um espaço de disputa – do qual as mulheres nunca se omitiram.

Poucos agentes culturais da classe trabalhadora conseguem dedicar-se unicamente à produção cultural, especialmente quando tal produção é contra-hegemônica e não se curva à indústria cultural. Esse cenário leva rappers, mestres de cerimônia e produtores a enfrentar dupla jornada de trabalho. Esta questão é ainda mais grave quando nos concentramos nas mulheres que, segundo o IBGE, dedicam em média 7,6 horas semanais a mais do que homens aos afazeres domésticos. Esse número chega a 8 horas semanais no caso de mulheres não-brancas.

A falha do Estado na criação de espaços que contemplem a diversidade da juventude trabalhadora deixou nas mãos dessa mesma juventude o papel de democratizar a cultura, resultando na criação de espaços auto organizados. Assim nasceram as Batalhas de Rima, espaços que reúnem dezenas de jovens, majoritariamente negros e periféricos, onde mestres de cerimônia mediam duelos entre MCs, que por sua vez dialogam através de rimas improvisadas em cima de beats tocados por um DJ. Em cada duelo, um MC é escolhido pelo público para avançar à próxima fase, prosseguindo nesse processo até que tenhamos um campeão. 

Muito mais que um duelo musical, as batalhas se configuram como um confronto de visões, ideias e práticas. Marcadas fortemente pela luta antirracista, elas são espaços de expressão e entretenimento para quem não tem acesso à espaços culturais por vezes elitizados, como shows e festas. As batalhas de rima também funcionam como verdadeiras escolas e foram responsáveis pela formação de grandes nomes do rap nacional. Naturalmente, os espaços de batalha não são alheios à realidade dos seus participantes, refletindo opressões estruturais dentro deles. Em particular, o machismo ainda é bastante presente, afastando e desincentivando a expressão de mulheres através do rap.

A fim de reverter este cenário, em 2020, no Dia Internacional das Mulheres, houve um evento no Parque do Bicão onde ocorreu uma batalha de rimas exclusivamente feminina. Larissa Fiovarante, uma das organizadoras do evento e integrante do coletivo Minas na Cena, conta que a intenção era que a batalha contasse com outras edições, plano temporariamente frustrado pela Pandemia do Coronavírus. “Mas, ao meu ver, a ideia de continuar a batalha segue a mesma […], quando for possível, vou fazer de tudo para ocorrer de novo!”, afirma Larissa.

Muito mais que um duelo musical, as batalhas se configuram como um confronto de visões, ideias e práticas. Foto: Tribuna São Carlense.

Conheça algumas das mulheres são-carlenses que projetam a voz de outras milhares através do rap.

 

Nega e a revolta como combustível 

Hoje em dia o que motiva Nega a escrever é o ódio e a revolta contra todo tipo de opressão. Créditos: Victor Otsuka.

Nega MC, como é conhecida Thalita Mayara da Silva, tem 27 anos e é cria do Jardim Centenário, em São Carlos. Entrou em contato com o rap ainda criança através dos irmãos mais velhos, que chegavam a rimar em cima dos hinos evangélicos de sua mãe. Cresceu ouvindo Sabotage, RZO, Dina Di, Racionais e Negra Li, não demorando para escrever seu primeiro som, intitulado Pense Bem, aos 9 anos de idade. A música era um conselho aos irmãos mais velhos, mostrando que desde cedo ela já percebia o poder do rap em dialogar com grupos marginalizados. Hoje em dia o que motiva Nega a escrever é o ódio e a revolta contra todo tipo de opressão.

Após o fim da pandemia, Nega planeja iniciar a produção do seu primeiro EP. A rapper busca cada vez mais a profissionalização do seu trabalho, para que um dia consiga ganhar a vida exclusivamente com a música. Mesmo isolada em casa há 1 ano, Nega lançou o som “4P – Poder Para o Povo Preto” no final do ano passado, gravado inteiramente no celular e produzido à distância, que você pode curtir clicando aqui!

Nega, que já foi vítima de machismo ao ser silenciada em uma batalha, pauta a necessidade de criação de espaços para potencialização das vozes das mulheres na quebrada. Nesse sentido, fez parte do sarau Minas de Ouro, hoje inativo, voltado prioritariamente para mulheres e pessoas trans, criando um necessário espaço de acolhimento e respeito: “se tivesse [uma iniciativa do tipo] em cada cantinho, em cada quebrada, teriam muitos mais minas MCs no nosso movimento, muito mais poetisas, muito mais minas sendo Mestres de Cerimônia. Nós, mulheres, não temos que conquistar um espaço, temos que tomar um espaço que sempre foi nosso”.

Mãe da Becca e da Maria Clara, Nega MC pauta a necessidade de pensar os espaços também para mães: “Os ouvintes não respeitam as crianças ali [nas batalhas de rima] presentes, fumando na roda”. Pontua ainda que o apoio do seu marido, Strumiê, também agente cultural da cidade, é fundamental para que seja possível ser mãe e artista.

 

Alice e a construção de espaços

Alice afirma que não podemos parar na representatividade, pois é preciso que as mulheres estejam inseridas nos espaços para mudar a estrutura das coisas.

Alice das Neves, nascida e criada em São Carlos, tem 20 anos e cresceu ouvindo Racionais e Facção Central em casa. Se envolveu com o movimento cultural aos 17 anos através da Batalha do Mercadão. Na época, a batalha estava em seu fim, deixando São Carlos sem nenhuma batalha ativa. Nesse contexto surgiu a Batalha da Alcateia, na praça Brasil. Um mês após a primeira edição, Alice já estava ativa na organização e foi fundamental para o estabelecimento da batalha, que já realizou 122 edições. 

“Nosso público é um tanto diverso: homens, mulheres, não-binaries… Mas, infelizmente, os MCs participantes nas batalhas são majoritariamente homens. De uma forma bem geral, eu diria que a aceitação das mulheres é tranquila. A maioria das pessoas que frequentam entende sobre respeito. Porém ainda temos casos de falas sexistas na roda. Por mais que tenhamos regras e punições para rimas de cunho opressor, isso ainda acontece e ao meu ver desmotiva as mulheres a participar. Por exemplo, por mais que você saiba que se for ofendida o sujeito será punido, ninguém quer ouvir falas machistas – e até misóginas! – num ambiente que deveria ser divertido.”

Com o desenvolvimento do feminismo liberal, aquele que segue a lógica de mercado sem propor qualquer mudança estrutural, fomos bombardeados com discursos em prol da representatividade feminina como forma de lidar com as desigualdades de gênero. Alice afirma que não podemos parar na representatividade, pois é preciso que as mulheres estejam inseridas nesses espaços para mudar a estrutura das coisas: “quando temos mulheres tomando a frente desses espaços, vemos mulheres reunidas, se expressando, ajudando outras mulheres, enquanto todos se divertem e interagem (homens, mulheres e crianças). Isso tem um impacto até mesmo para os homens, pois os tira da zona de conforto onde ‘podem’ ser uns otários junto com amigos e os força a aprender a respeitar outras vivências”.

Alice também participou da organização da Batalha das Minas, citada anteriormente, e idealizou o Sound’Pret4, um evento de rua ocorrido em 2018 voltado para pessoas pretas, com microfone aberto, shows e DJs, somente com mulheres negras na line. 

 

Sara e a busca por um mundo novo

“Um novo mundo é possível e já acontece. Ele é coletivo, inclusivo e diverso. Não é branco, padrão e muito menos cisnormativo”.

Sara Donato, 30, é uma rapper sãocarlense de grande projeção, que atualmente mora em São Paulo. Inspirada no irmão mais velho que cantava em um grupo musical, sempre se imaginou em cima de um palco. Em 2005, com apenas 14 anos, fundou com suas amigas seu primeiro grupo de rap, o Conduta Feminina: “ninguém sabia muito o que fazer, mas fomos aprendendo juntas”.

Em 2012, Sara e seus amigos fundaram a Batalha do Mercadão, no centro de São Carlos. Em 2016, quando se mudou para São Paulo, sentiu falta de um espaço confortável para mulheres rimarem. Surgiu assim a Batalha da Dominação, na saída do Metrô São Bento. Hoje em dia, a batalha é uma das mais renomadas da capital paulista, onde o microfone é aberto a todos que queiram se expressar, no entanto só batalham mulheres e pessoas trans. 

Mesmo morando em São Paulo, Sara carrega consigo um grande orgulho da sua cidade natal: “Eu sou cria da Cidade Aracy. Costumo dizer que é minha cidade dentro de São Carlos [risos]. Sempre falo sobre o fato de ser uma mina do rap nascida no interior de SP. Vivi minha vida toda em São Carlos, vivi o rap e o hip hop nesse solo. O interior é solo fértil e tem muito talento por aí”. Em 2020, participou do cypher Terra Escarlate com os rappers $tevan e Gon, exaltando a identidade são-carlense: “Fazer parte desse som com Stevan e Gon foi muito importante, estava com saudades disso. Inclusive escutem o novo álbum do Stevan que está muito lindo!“

Sara lamenta o grande número de Mcs Vacilões na cena musical: “Infelizmente ser MC não isenta ninguém de ser vacilão. Alguns, inclusive, usam o fato de ser MC pra ser vacilão em dobro. Já conheci MC que não paga pensão, que é agressor, inclusive de São Carlos. No que depender de mim, esses nunca mais pisarão em nenhum palco na vida.”

Ao chegar em São Paulo, Sara Donato fundou juntamente com o rapper Jupi77er o duo Rap Plus Size, que permanece ativo até os dias atuais: “O Rap Plus Size surgiu com a intenção de ser apenas um álbum colaborativo entre Jupi77er e Sara Donato, mas essa junção deu tão certo que nos unificamos em uma dupla e o nome do disco virou o nome da dupla. Isso realmente consolidou uma caminhada no Rap e no cenário do Hip Hop. Nossos objetivos sempre foram o de fortalecer as pessoas, empoderando e trazendo uma perspectiva de autonomia e amor próprio, liberdade ao próprio corpo. Isso é muito incrível e ver a resposta das pessoas, do nosso público, em relação a mensagem que passamos mostra que tem sido positivo e é esse lugar que nos encontramos: o de informar, acolher, mostrar outras possibilidades e enfrentar os problemas que o CIStema coloca pra nós de maneira combativa e com voz ativa. Acreditamos que da forma que fazemos poucos outros grupos fazem. Aliás, não tem nada como o Rap Plus Size por aí [risos]”

O último álbum do Rap Plus Size se chama “A grandiosa imersão em busca do mundo novo”, e está disponível em todas as plataformas digitais: “Acredito que um novo mundo é possível e já acontece. Ele é coletivo, inclusivo e diverso. Não é branco, padrão e muito menos cisnormativo.”

O Tribuna reuniu sons de minas do rap sãocarlense em uma playlist pra você curtir aqui! Sentiu falta de alguma artista? Deixe uma sugestão nos comentários!


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