Conheça a Comunidade Renascer, onde quase 400 famílias estão sob ameaça de despejo
12/08/2020Nesta segunda-feira (10) o Tribuna noticiou a reintegração de posse contra a Comunidade Renascer (Piracicaba) executada pela PM na semana anterior. Apesar da exigência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) da Organização das Nações Unidas (ONU), para que cessem as remoções durante a pandemia, elas seguem a todo vapor no Brasil.
Com truculência, a PM invadiu a área e desabrigou cerca de 15 famílias. Naquele momento, o município registrava 7459 casos de COVID-19. Neste cenário, a comunidade que conta com cerca de 400 famílias, teme que seus moradores fiquem sem casa e sem ter para onde ir. Com apoio da liderança local e de toda a comunidade, os moradores afetados estão se alocando na parte mais alta do terreno.
A responsabilidade prevista na Constituição que o Estado deveria ter de prover abrigo ou moradia alternativa em caso de remoção é ignorada. Quem se responsabiliza por isso é a própria comunidade, que se mobiliza para que os moradores não fiquem desabrigados.
Sobre Renascer
Daqueles que sobrevivem a um desastre, mais ou menos machucados, dizemos que nasceram de novo, que renasceram. Também podemos dizer isso daqueles que aspiram novos ares, dos migrantes que deixam a situação de miséria de sua terra natal para lutar por uma nova vida, numa terra nova.
Tudo isso ganha sentido na comunidade Renascer, nome escolhido com precisão cirúrgica para representar a luta pela (nova) vida de seus moradores.
E adianto: só o que eles querem é o direito de construir seus lares para viverem com dignidade. Para que isso se torne possível, estão comprometidos a cumprir com as contrapartidas necessárias, impostos, contas regulares etc.
A história da comunidade Renascer começa no segundo semestre de 2019, quando chegaram os primeiros ocupantes daquela terra, que estava ociosa e vazia há pelo menos 30 anos. As histórias de seus moradores vão muito mais longe e aqui trarei um pouco de algumas delas.
São cerca de 400 famílias no local, o que faz da Comunidade uma das maiores – senão a maior – ocupações do interior do estado de São Paulo. Cada ocupante veio de um lugar diferente, mas de trajetórias com certas semelhanças: são vidas de sofrimento, miséria, solidão e luta para sobreviver que se encontraram nessa comunidade e ganharam novo sentido. Um sentido coletivo de união.
Havia, no início, pessoas que não viviam na Comunidade, mas erguiam barracos com a intenção de vendê-los. Agora, a partir de uma decisão coletiva, essa prática está proibida. A Comunidade entende que, como a terra não é, juridicamente, dos ocupantes, eles não devem abrir um mercado de compra e venda de barracos. Só tem posse de barraco quem vive na Renascer, isto é: quem precisa, faz parte da Comunidade e se engaja na luta por moradia. Além disso, uma pessoa que tem a posse de um barraco e não vive na Comunidade, não participa da luta por moradia e se assemelha, numa escala muito menor, ao proprietário que especula a terra.
Os ocupantes enfrentam diversos problemas por falta da presença de serviços que deveriam ser garantidos pelo Estado. Nem todos têm acesso à água e, quando têm, é pouca e costuma faltar; não há sistema de esgoto; a rede elétrica é precária e muitas vezes queima geladeiras, por exemplo.
Para muitos, a condição de vida pode ser resumida em “pagar aluguel ou comer”, o que os motiva a lutarem por moradia na Renascer. E ainda, com a pandemia, a situação de desemprego na Comunidade cresceu e muitos passaram a precisar de doações de cestas básicas.
Por conta da solidariedade dentro da Renascer, essas necessidades têm sido contornadas. As lideranças locais organizam uma lista de pedidos e um centro de distribuição. As doações são feitas pelos próprios moradores, numa rede de ajuda mútua, ou por meio de campanhas de arrecadação de coletivos da cidade. Além disso, é muito comum uma família alimentar várias outras famílias. O senso de solidariedade na Renascer é nítido e até mesmo o repórter do Tribuna foi agraciado com um delicioso prato do James Chef, morador da comunidade.
Outro problema permanente, até que o sonho da Renascer se realize, é a qualidade dos barracos. Essa população não tem condições de investir em estruturas mais sólidas, confortáveis e funcionais para suas casas, pois correm o risco de que no dia seguinte elas sejam derrubadas por ordem judicial. É um investimento de alto risco e quem se preocupa com o que vai comer no dia seguinte não pode se dar esse “luxo”. Isso significa que os barracos carecem de fechamento, vedação e, às vezes, ventilação adequados. Ainda, como a carência por materiais de construção é muito grande, em alguns barracos, famílias inteiras dividem pequenos cômodos para dormir.
Nesta pandemia, o mundo descobriu que fazer quarentena, que deveria ser um direito garantido, é, na prática, um privilégio. Os moradores da Renascer não puderam se resguardar por muito tempo em suas casas e tiveram que se arriscar em busca de renda, muitas vezes em serviços informais. Mesmo assim, até o momento não tiveram casos confirmados de COVID-19 dentro da Comunidade. Mas a preocupação e o cuidado seguem grandes.
Não bastassem as difíceis condições de moradia que os ocupantes enfrentam, com a pandemia vieram o subemprego e o desemprego, que assolam a Comunidade e os impelem a aumentar os laços de fraternidade entre si. Na dificuldade imposta pela exploração da vida, eles reconhecem a força que ganham se estão unidos. Talvez isso explique a forte união entre eles, expressa na máxima solta por um morador anônimo: “Comunidade sem unidade, não é comunidade!”
A Renascer agora está cada vez mais unida para ficar. Os ocupantes querem dar um novo destino a essa terra ociosa e improdutiva, cujos respectivos impostos foram sonegados pelos proprietários.
Ju
Mãe de cinco filhos, Ju é chefe de família. Chegou nos primeiros meses da ocupação. Sua situação anterior era complicada, vivia numa pequena casa de fundos divida com a família toda. Era muita gente pra pouco teto. Ficou desempregada e, então, os custos de vida apertaram. Piracicabana, sempre morou nas proximidades, mas a Renascer é sua primeira ocupação. Luta para que seja a única.
Com pouco tempo vivendo na comunidade Renascer, a PM invadiu a ocupação, expulsou os moradores de seus barracos e juntou todos num canto. Os policiais disseram que era para fazer uma simples contagem dos moradores. Acuados e evitando aumentar o conflito, os moradores obedeceram prontamente a ordem de saírem de suas casas sem qualquer flagrante. Enquanto a PM os mantinha agrupados na parte baixa do terreno, derrubava alguns barracos na parte alta. Um desses barracos era da Ju, o nº 12.
Rapidamente, com a ajuda da comunidade, ela reconstruiu seu barraco, que atualmente é abrigo da família de sua filha. Ju se mudou para o outro lado da Renascer.
Hoje, Ju divide os cuidados da avó de 101 anos com o marido dela. Nesta pandemia, redobraram os cuidados para evitar que a avó contraia a COVID-19.
Devido a sua participação ativa nas movimentações da Comunidade, quando tomou a frente na assinatura de uma procuração judicial, por exemplo, Ju acabou se tornando uma das lideranças da Renascer. Ela está em contato constante com os advogados populares Marcela Bragaia e Caio Garcia, que prestam assessoria jurídica à Comunidade. Ela também organiza os grupos de mensagens dos moradores e suas reuniões, que ocorrem quinzenalmente. Além disso, Ju se responsabiliza por repassar e atualizar a lista de moradores para cadastro no Centro de Referência e Assistência Social (CRAS), para que possam se inscrever em programas da Empresa Municipal de Habitação de Piracicaba (EMDHAP).
A EMDHAP, aparentemente, tem sido solícita com os ocupantes e deve fazer um levantamento de todas as dívidas dos proprietários do terreno. Ju e outro morador também contaram ao Tribuna que tiveram reunião com Prefeito e a EMDHAP, mas não tiveram nenhuma resposta definitiva se haveria alguma política habitacional ou de regularização para a Comunidade Renascer. Agora querem uma nova reunião para saber a situação.
Antônio, Regiane e a ocupação Taquaral
Seu Antônio, depois de se separar e ficar sem emprego, deixou Ubatuba para o interior por conta de uma oportunidade de trabalho. Conta que já trabalhou por várias cidades da região do Vale do Paraíba e do Litoral Norte. Pedreiro experiente, constrói casas em alvenaria nos bairros ricos da cidade, mas o produto que tanto ergue com suas próprias mãos, ainda não pode ter para si.
Seu Antônio chegou à Renascer após a ação de reintegração de posse na comunidade Taquaral, que ocorreu no dia 7 de maio, em plena pandemia e estado de calamidade pública. Ele viveu todos os momentos de terror dessa ação. Lembra vividamente do relinchar estridente das vigas de madeira de 15 centímetros se rompendo com a força da escavadeira. Essa memória demonstra duas coisas: 1) a capacidade que os ocupantes têm de construir casas sólidas e resistentes com tão pouco e precário material; 2) a brutalidade física e moral da ação policial, capaz de desterrar famílias inteiras com a humilhação da destruição de seus abrigos diante de seus olhos.
Antônio, fica indignado com o fato da Justiça não ter dado sequer um aviso prévio da reintegração. Tudo ocorreu muito repentinamente, era madrugada quando a PM chegou à Taquaral. A ação se desenrolou com terror, correria, bombas, cassetetes e balas de borracha.
Mães e pais correndo para juntar as crianças e tirá-las do meio do campo de batalha e da sessão de espancamentos, deixando todos os pertences para trás. Foi o que ocorreu com Regiane, sobrinha de Seu Antônio, a quem ele tentou correr para acudir, mas foi impedido pelo cassetete de um PM. Regiane e seu marido acordaram as crianças às pressas para levá-las à casa de uma amiga, que mora no bairro. Seus pertences ficaram retidos por 2 meses, só recentemente conseguiram recuperá-los.
Bombas lançadas pela Polícia explodindo por entre aqueles que ficaram para resistir. Cassetete e balas de borracha sobraram para quem não se intimidou com as bombas, ou até mesmo para quem ficou tão atordoado que não conseguiu escapar a tempo, fossem homens adultos ou senhoras idosas. Assim, aos golpes e rasteiras, deram fim à Comunidade Taquaral. Memória triste que Seu Antônio e Regiane estão confiantes que irão substituir por uma alegre em suas casas novas.
Desamparadas e sem abrigo, muitas das famílias da Taquaral receberam amparo e abrigo na Comunidade Renascer, onde se viram mais unidos. Vivem agora numa comunidade mais organizada e consciente de sua situação.
Renascer, sonho de vida
Na Renascer existe um planejamento urbano visível e organizado, mesmo que não haja projetos desenhados, eles foram pensados e concebidos pela própria comunidade. Isso é demonstrado pela preocupação em se ter não só um teto, mas também quintal, ventilação entre as casas e ruas para as crianças brincar. Ou seja, uma comunidade consciente e que luta não só para sobreviver, mas para poder viver.
Ju, Seu Antônio, Regiane e todos outros moradores que conversaram com o Tribuna demonstraram um sonho em comum: poder finalmente ter uma casa para viver e se ver longe do terrorismo da reintegração. Terrorismo presente constantemente já que, como mencionado acima, apesar de recomendações do CNJ e da ONU contrárias às reintegrações por conta da pandemia, existe contra a Renascer um processo no Tribunal que pede a reintegração de posse. Por ora este processo está parado, mas a Comunidade toda permanece ameaçada. E como visto na demolição das casas na Taquaral e dos barracos da parte baixa da própria Renascer, isso pode mudar a qualquer instante.
Antes da ocupação, o território que hoje abriga a comunidade Renascer não servia para nada além de especulação e ilicitudes: é fruto de sonegação e era área de desmanche e desova. Por obra dos ocupantes, hoje existem hortas para dividir a colheita, ruas para andar, olhar o movimento e para as crianças brincar.
E ainda estão nos planos da Renascer a construção de um centro comunitário, uma biblioteca e uma cozinha coletiva.
Para acompanhar, a Renascer mantém uma página no Facebook (Bairro Renascer) e uma no Instagram (@comunidaderenascer930).
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