Quem é ela? Velha e mulher

Quem é ela? Velha e mulher

11/03/2024 Off Por Colaborador/a

“Falar em mulher idosa não é somente falar da mulher já velha, é falar também do envelhecimento de todas as mulheres trabalhadoras, sobretudo àquelas em condição de desagregação e invisibilidade social.”   

Por Isabella Fallaci

Quando falamos em envelhecimento populacional, falamos de uma tendência de nível mundial. No Brasil e em diversos outros países, envelhecimento tem gênero, vivemos o fenômeno da feminização da velhice. Esse termo, na prática, significa: maior prevalência relativa de mulheres na população idosa, maior longevidade, expectativa de vida e, consequentemente, crescimento do número de mulheres idosas que fazem parte da população economicamente ativa e que são chefes de família. 

O fato de termos mais mulheres idosas chefiando famílias e inseridas na população economicamente ativa pode parecer positivo, porém espelha a realidade perversa do capitalismo neoliberal, onde, cada vez mais, a população jovem não está dando conta de prover suas próprias necessidades e as mulheres encontram-se em jornadas de trabalho e responsabilidades cada vez mais numerosas. Dados apontam que a renda da mulher idosa é fundamental para um terço das famílias brasileiras e grande parte delas dependem do Benefício de Prestação Continuada (BPC). 

Para as mulheres dentro do capitalismo, viver mais não significa necessariamente viver melhor. A feminização da velhice impõe à mulher mais desvantagens que vantagens, tanto de um ponto de vista biológico quanto social. Tendencialmente, por motivos intrínsecos (fatores biológicos do envelhecimento) e extrínsecos (como a falta de garantia e acesso aos direitos básicos somada à sobrecarga de múltiplas jornadas de trabalho) as mulheres estão sujeitas a passar por um período maior de debilitação física antes de morrerem. Durante a velhice, elas são mais atingidas por doenças crônicas não transmissíveis, incapacidades funcionais, dores crônicas, distúrbios do sono, déficit cognitivo, fragilidades, incontinência urinária, problemas de mobilidade e problemas de força e equilíbrio.

Devemos considerar que o processo de envelhecimento é constituído por idade, gênero, raça, classe, território, sexualidade e geração. Desse modo, podemos compreender como o envelhecer das mulheres resulta de posições desiguais ao longo da vida, vulnerabilidades e exploração sistemática de seu trabalho. 

Em âmbito nacional, temos que: de 9,4% de pessoas idosas sem rendimentos, 80,05% são mulheres. Desse modo, as mulheres enfrentam o envelhecimento com menos recursos do que os homens e se aposentam menos (situação piorada recentemente pelos impactos violentos da última Reforma da Previdência durante o governo de Bolsonaro).

A mulher idosa em São Carlos 

Falar da mulher idosa de São Carlos, é falar sobre a realidade das mulheres idosas da classe trabalhadora, as quais, ao longo de suas vidas sofreram com baixas taxas de alfabetização escolar, informalidade e precarização do trabalho junto à exploração do trabalho doméstico e de cuidado não pago, gerando assim maior insegurança e instabilidade financeira. Segundo o último censo do IBGE, de 2022, as mulheres idosas de São Carlos representam mais de 67% da população total de idosos e 10,4% da população total de São Carlos.

A rede de atenção à pessoa idosa encontra-se desarticulada e inexistente em muitos espaços de nossa cidade. Sendo “apenas” mais uma expressão de uma realidade nacional de invisibilização do velho: o corpo que não é mais produtivo para o capital e que representa uma bomba relógio para os sistemas de proteção social e previdenciário.

O desmantelamento de políticas públicas voltadas à população idosa e a desestruturação da rede de serviços públicos em São Carlos, impacta na ineficiência de representação e garantia de direitos da pessoa idosa em nosso município. Ao considerar as diversas e ambíguas realidades do envelhecimento, marcadas por desigualdades e heterogeneidades territoriais, nos questionamos “Quem tem o direito de envelhecer em seu território?” Quando bairros marginalizados sofrem constantemente com enchentes, com a resultante insegurança que ameaça o direito à moradia, os impactos físicos, materiais e psicológicos decorrentes disso, ou então, a concreta situação de ter o direito à moradia negado pelo Estado, como no caso das mulheres idosas que residem e resistem dentro de ocupações urbanas. Sem falar na precarização e desfinanciamento de outros serviços essenciais para a garantia de nossa saúde (entendida como completo bem-estar de dimensão biopsicossocial).

No entanto, falar em mulher idosa não é somente falar da mulher já velha, é falar também do envelhecimento de todas as mulheres trabalhadoras, sobretudo àquelas em condição de desagregação e invisibilidade social. Mulheres que, muitas vezes, estão apartadas de qualquer possibilidade de participação popular no planejamento institucional de políticas públicas voltadas às demandas de seu envelhecimento. Quem poderá traçar as demandas da feminização da velhice, senão as próprias mulheres que envelhecem?

A feminização da velhice é também a feminização da pobreza, catalisada por formações sociais e realidades materiais desiguais. O estado de exclusão dessa massa de mulheres, a impossibilidade de exercer sua participação na sociedade, de ser considerada e se sentir pertencente ao grupo de cidadãos, nos encaminha para as seguintes reivindicações: trabalho, renda, aposentadoria, moradia, acesso à serviços de saúde e assistência social, justiça, educação permanente e continuada, transporte e participação popular! 

Conclusão

A classe dominante se apropria de cada gota de suor do trabalho das mulheres idosas, as quais, em sua maioria, continuam exercendo trabalho doméstico não remunerado e são cuidadoras, seja de outras pessoas idosas, crianças e/ou adolescentes. O cuidado se torna uma extensão do trabalho feminino.

Como diz Silvia Federici:

“O que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”.

A existência das mulheres foi mecanizada para o trabalho, nossos corpos foram transformados em objetos sexuais e máquinas reprodutoras. Mesmo após a idade em que já não nos é mais permitida qualquer expressão de sexualidade, pois já não temos mais capacidade de gestar, ainda assim reproduzimos incessantemente a sociedade. Cuidamos do marido, da casa, dos filhos e até dos netos, para assim, nossos filhos poderem embarcar na correnteza do mercado de trabalho.

Somos a linha de frente das vítimas da atomização neoliberal, com uma comunidade cada vez mais incapaz de tornar-se um corpo social, todo o cuidado à população idosa recai primariamente sobre as mulheres familiares, muitas já idosas e com altos níveis de sobrecarga.

Além disso, ao mesmo tempo em que as mulheres idosas são as que mais cuidam de outras pessoas da família, elas próprias estão prejudicadas ao precisarem de cuidado. Pois mesmo demandando mais cuidados em relação aos homens, são as menos prováveis de receber cuidado por eles, gerando eventos negativos sobre sua saúde física e psicológica.

Temos então como resultado: homens idosos recebendo mais cuidados e a perpetuação de condições de desigualdade social e de gênero. Além disso, efeitos cumulativos dessas disparidades nos tornam propriamente e historicamente, mais vulneráveis à pobreza, violência, discriminação e marginalização em nosso processo de envelhecimento. 

Mulheres idosas são mais pobres, mais violentadas, discriminadas e marginalizadas. Viver mais não é necessariamente viver melhor. A ação que nos resta, principalmente enquanto mulheres e feministas, é olhar para essa mulher velha, reconhecer-se nela e coletivizar nossa luta às diversas e diferentes formas de ser mulher.

Cerremos os pulsos em luta por um envelhecimento digno de nós, mulheres!

Referências

  1. NERI, Anita Liberalesso. Palavras-chave em Gerontologia. Campinas: Editora Alínea, 2014.
  2. IBGE. Censo Demográfico. 2022. Disponível em: https://censo2022.ibge.gov.br/. Acesso em: 05 mar. 2023.
  3. RABELO, Dóris Firmino. Interseccionalidades e a feminização da velhice no Brasil. In: DIÁLOGOS MULHERES E INTERSECCIONALIDADE NA AMÉRICA LATINA. União Latino-Americana de Entidades de Psicologia, 2021.