Os rastros históricos da desvalorização do trabalho da mulher

Os rastros históricos da desvalorização do trabalho da mulher

08/03/2021 Off Por Equipe Tribuna

Em 2019, no Brasil, segundo os últimos levantamentos do IBGE publicados no último dia 4 de Março, mulheres receberam um salário em média 22% menor que o salário recebido por homens para exercer uma mesma função. Essa discrepância já foi pior e vem diminuindo ao longo dos anos, apesar disso, continua expressiva.

Desde a década de 1970, diversas pesquisadoras brasileiras do campo da sociologia estudam a relação das mulheres com o trabalho. Seus estudos indicam que esse fato tem suas raízes na própria história brasileira e em estigmas cultivados e perpetuados por séculos, como o machismo e o racismo. Para essas pesquisadoras, os mesmos preconceitos históricos são um dos diversos instrumentos usados para exploração da mão-de-obra feminina no Brasil contemporâneo.

 

O começo das assalariadas

No século XX, as guerras mundiais fizeram com que o Brasil não pudesse mais contar com as importações de produtos industrializados da Europa e dos Estados Unidos. Assim, nasceram as políticas desenvolvimentistas. Os antigos engenhos de açúcar deram lugar às indústrias e a população brasileira tornou-se majoritariamente urbana. 

Quando chegou a Segunda Guerra Mundial, na metade do século XX, parte da população masculina — a mão-de-obra empregável até então — foi realocada do trabalho produtivo para as frentes de batalha. Por um lado, a disponibilidade de mão-de-obra para as fábricas e para a agricultura foi esvaziada. Por outro, quem levava o dinheiro para as famílias não podia mais fazê-lo nesse momento porque estava na guerra. Naturalmente, esse fenômeno atingiu mais em cheio a população europeia, dado seu maior envolvimento com a guerra. No entanto, o Brasil também participou da Segunda Guerra Mundial, mesmo que em menor escala. Estima-se que nosso país enviou aproximadamente 25 mil homens pela Força Expedicionária Brasileira, 400 homens de apoio e 42 pilotos pela Força Aérea Brasileira para os campos de batalha.

Naquele contexto, os empresários necessitavam que alguém ocupasse o trabalho anteriormente exclusivo dos homens nas fábricas. Ao mesmo tempo, as mães de família precisavam fazer com que os salários chegassem às suas famílias para garantir sua própria sobrevivência e a de seus dependentes. Assim, a mão-de-obra responsável pela produção das fábricas e dos serviços, que até então era exclusivamente masculina, começou a ser composta também por mulheres. O que por um lado foi uma conquista de não restrição ao trabalho doméstico, por outro gerou novos problemas para as mulheres trabalhadoras. 

Dentre esses vários problemas gerados está o salário desigual. Em um relato no 1º Congresso de Mulheres da Metalurgia de São Bernardo do Campo, realizado em 1978, uma antiga trabalhadora de uma oficina de solda conta: “Além de mim, só havia homens na oficina. Eu produzia 100, 110 peças (depois baixei para 88), enquanto os homens só produziam 68, 70. Enquanto eles ganhavam Cr$ 10,50 por hora, eu ganhava Cr$ 6,00; depois eles passaram para Cr$ 11,50 e eu, para Cr$ 6,50”. 

A inserção da mulher no mercado de trabalho assalariado também nunca a eximiu de ter a responsabilidade exclusiva sobre o trabalho doméstico e sobre a criação dos filhos, gerando as jornadas duplas e triplas de trabalho. No livro “A mulher na sociedade: mito e realidade” publicado em 1976, a cientista social e professora emérita da Unesp Heleieth Saffioti posiciona-se contrariamente a essa exclusividade ainda designada às mulheres: “A maternidade, por exemplo, não pode ser encarada como uma carga exclusiva das mulheres. Estando a sociedade interessada no nascimento e socialização de novas gerações como uma condição de sua própria sobrevivência, é ela que deve pagar pelo menos parte do preço da maternidade, ou seja, encontrar soluções satisfatórias para os problemas de natureza profissional que a maternidade cria para as mulheres.”

Saffioti alerta ainda para a diferença entre trabalho e inserção no mercado de trabalho. A inserção da mulher no mercado de trabalho no Brasil não significa que antes as mulheres não trabalhavam: “A mulher das camadas sociais diretamente ocupadas na produção de bens e serviços nunca foi alheia ao trabalho. Em todas as épocas e lugares tem ela contribuído para a subsistência de sua família e para criar a riqueza social”. Assim, o que acontece após a Segunda Guerra Mundial não é uma inédita inserção das mulheres no mundo do trabalho, mas a ocupação de postos de trabalho remunerados.

 

Presente, mas com resquícios de passado

Hoje, mais de cinco décadas após o 1º Congresso de Mulheres da Metalurgia de São Bernardo do Campo, a discrepância salarial entre gêneros, ainda que menos expressiva do que 50 anos atrás, continua alta. Segundo o IBGE, enquanto o rendimento mensal médio do homem brasileiro foi de R$ 2.555 no ano de 2019, o da mulher brasileira foi de R$ 1.985.

Além disso, o IBGE também destaca que no mesmo ano as mulheres seguiram com a maior carga de trabalho sobre afazeres domésticos, que tomaram em média 11 horas semanais dos homens e 21,4 horas semanais das mulheres.

Para Elisabeth Souza Lobo, pesquisadora pioneira em sociologia do traba­lho, relações de gênero e movimentos sociais urbanos, esses dados têm um motivo: “O capital não cria a subordinação das mulheres, porém a integra e reforça”. Socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudo de Gênero da UNICAMP, Maria Lygia Quartim de Moraes também traz essa perspectiva ao indagar em seu livro “Pós-modernismo, marxismo e feminismo”: “se os capitalistas podem pagar menores salários, usufruir das discriminações históricas contra mulheres e negras/os e diminuir os custos da produção/reprodução da vida social, por que não o fariam?”.

Assim, a desvalorização do trabalho da mulher estaria atrelada a um passado histórico machista e racista. O discurso histórico de que a mulher vale menos — e a mulher negra menos ainda — seria hoje usado para explorar ao máximo o trabalho das mulheres e consequentemente extrair o maior lucro possível através dessa exploração.

O 8 de março, Dia Internacional da Mulher, nasceu como resposta à perpetuação dessa exploração e de outras diversas violências que as mulheres continuam sofrendo. Não se trata apenas de um dia de comemoração, mas de um dia que coroa a luta das mulheres pelo seu direito de igualdade entre gêneros. O fato de que a diferença salarial entre homens e mulheres vem diminuindo ao longo dos anos é algo que denota a importância dessa luta e demonstra a força que a organização entre as mulheres trabalhadoras pode ter.


Esta é a primeira de uma série de reportagens que o Tribuna está produzindo durante o mês de março com a temática da luta das mulheres por espaço e direitos. Fique ligado!

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