O Sabor do Saber #4 – Lamentos de um matemático

O Sabor do Saber #4 – Lamentos de um matemático

26/02/2020 Off Por Equipe Tribuna

por Luciano Rocha

Tenho uma irmã de 9 anos e acompanho, com aflição, sua educação escolar. Com 9 anos ela já tem, há algum tempo, uma convicção: ela não gosta de matemática. Não coincidentemente, quando criança eu tinha a mesma opinião. Sempre que possível, tento ensiná-la coisas interessantes, desconstruir conceitos ensinados na escola e apresentar a matemática como arte ou um jogo. Infelizmente, é muito difícil competir com um sistema educacional que insiste em ensiná-la a dividir 261 por 9. Ou o mais revoltante: competir com um sistema que a aplica provas desde antes de ela saber andar de bicicleta.

Como encontro-me no limbo entre o final da graduação e o início da pós, nos últimos meses tenho trabalhado para uma editora de livros na elaboração de questões preparatórias para o ENEM para os ensinos fundamental e médio, seguindo diretrizes bem definidas. Eu nunca vou perdoar o capitalismo por isso. Essas coisas me levam a um único pensamento: tá tudo errado.

A matemática é arte e precisa começar a ser pensada como tal.  Abaixo organizei excertos do texto “Lamentos de um matemático”, escrito por Paul Lockhart e traduzido por Peterson Silva, Tiago Madeira e Rafael Beraldo. Lockhart foi pesquisador da estadunidense Brown University e posteriormente tornou-se professor de matemática em uma escola do Brooklyn, em Nova York. No texto, o autor faz um exercício de imaginação sobre como seria se outras formas de expressão que são socialmente reconhecidas como arte, como a música, tivessem o mesmo tratamento dado à matemática pelo nosso sistema educacional e posteriormente divaga sobre o caráter artístico da matemática. Boa leitura!


Um músico acorda de um terrível pesadelo. Em seu sonho ele se vê numa sociedade onde a educação musical tornou-se obrigatória. “Nós estamos ajudando os estudantes a se tornarem mais competitivos num mundo cada vez mais cheio de sons”. Educadores, sistemas de ensino e o Estado são os responsáveis por este importante projeto. Estudos foram feitos, comitês foram formados e decisões foram feitas – tudo sem a participação de um músico ou compositor sequer.

Como músicos comumente registram suas ideias na forma de partituras, esses curiosos pontos e linhas pretas devem constituir a “linguagem da música”. É imperativo que os estudantes se tornem fluentes nessa linguagem se eles almejam atingir qualquer grau de competência musical; de fato, seria ridículo esperar que uma criança cantasse ou tocasse um instrumento sem ter uma boa base de notação e teoria musical. Tocar e escutar música ou ficar sozinho compondo uma canção original são considerados tópicos muito avançados, por isso são geralmente adiados no mínimo para a faculdade, e mais frequentemente para a pós-graduação.

No Ensino Fundamental o objetivo é treinar os estudantes no uso dessa linguagem – manipular símbolos de acordo com um conjunto fixo de regras: “Aula de música é onde nós pegamos nosso caderno pautado, nosso professor coloca algumas notas no quadro e nós as copiamos ou as transpomos para um tom diferente. Nós não podemos errar ao copiar as claves e as armaduras e o nosso professor é muito exigente sobre pintar as semínimas completamente. Uma vez tivemos um problema de escala cromática e eu acertei, mas o professor não me deu dez porque eu coloquei as hastes no lado errado”.

No auge de sua sabedoria, os educadores logo perceberam que mesmo crianças muito novas podem receber este tipo de instrução musical. De fato, é considerado vergonhoso um garoto de terceira série não ter memorizado o ciclo de quintas. “Eu vou ter que levar meu filho a um professor particular. Ele não se dedica aos seus deveres de música. Diz que é chato. Só fica sentado, olhando pela janela, cantarolando para si mesmo e fazendo músicas bobas”.  

Nas séries mais avançadas a pressão é mais forte. Afinal, os estudantes precisam ser preparados para as provas tradicionais e o vestibular. Estudantes precisam ter aula de Escalas e Modos, Métrica, Harmonia e Contraponto. “É bastante coisa para aprender, mas depois, na faculdade, quando finalmente ouvirem tudo isso, eles vão realmente apreciar o trabalho que fizeram no Ensino Médio”. É claro que não são muitos os estudantes que vão se dedicar à música, então apenas alguns escutarão os sons que os pontos pretos representam. De qualquer forma, é muito importante que todo membro da sociedade possa reconhecer uma modulação ou uma fuga, não importa que eles nunca ouçam uma. “Para dizer a verdade, a maioria dos estudantes não é muito bom em música. Eles ficam entediados na sala, não têm habilidade e suas tarefas de casa são quase ilegíveis. A maioria deles não se importa em como a música é importante no mundo de hoje; eles passam a aula de música querendo que ela acabe de uma vez. Eu acho que existem pessoas que nasceram para a música e outras que não. Eu tive uma criança que, nossa, era sensacional! Suas partituras eram impecáveis – cada nota no lugar certo, caligrafia perfeita, sustenidos, bemóis, simplesmente lindos. Ela será uma tremenda musicista um dia.”

Ao acordar suando frio o músico se dá conta de que, felizmente, foi tudo apenas um sonho maluco. “É claro!” ele diz a si mesmo, “nenhuma sociedade reduziria uma forma de arte tão bonita e significativa a algo tão estúpido e trivial; nenhuma cultura seria tão cruel com suas crianças a ponto de privá-las de uma expressão humana tão natural. Que absurdo!” […].

Infelizmente, nosso atual sistema de ensino de matemática é precisamente este tipo de pesadelo. De fato, se eu tivesse que projetar um mecanismo com o propósito explícito de destruir a curiosidade natural de uma criança e seu prazer em criar padrões, não conseguiria fazer melhor do que está sendo feito atualmente – eu simplesmente não teria a criatividade necessária para inventar ideias tão sem sentido e dolorosas quanto as que constituem o ensino de matemática contemporâneo. Todos sabem que algo está errado. Os políticos dizem “precisamos de padrões melhores”. As escolas dizem “precisamos de mais dinheiro e equipamentos”. Educadores dizem uma coisa e professores dizem outra. Estão todos errados. As únicas pessoas que entendem o que está acontecendo são as que mais levam a culpa e são menos ouvidas: os alunos. Eles dizem “a aula de matemática é estúpida e entediante”, e eles têm razão.

Matemática e Cultura

A primeira coisa a entender é que matemática é uma arte. A diferença entre matemática e as outras artes, tais como música e pintura, é que nossa cultura não a reconhece como tal. Todos entendem que poetas, pintores e músicos criam obras de arte e se expressam por palavras, imagens e sons. De fato, nossa sociedade é bastante generosa quando se trata de expressão da criatividade: arquitetos, chefs e até diretores de televisão são considerados artistas profissionais. Por que não matemáticos? Parte do problema é que ninguém faz a mínima ideia de o quê matemáticos fazem […].

A matemática é a mais pura das artes e também a menos compreendida. Então permitam-me tentar explicar o que é a matemática e o que os matemáticos fazem. Provavelmente a melhor maneira é começar com a excelente descrição de G. H. Hardy: “Um matemático, como um pintor ou poeta, é um criador de padrões. Se os padrões daquele são mais permanentes que os destes, é porque são feitos com ideias”.

Então matemáticos ficam fazendo padrões de ideias […]. Se existe algo como um conceito estético comum na matemática, é este: o simples é belo. Matemáticos gostam de pensar sobre coisas, as mais simples possíveis, e as coisas mais simples são imaginárias. Por exemplo, se estou a fim de pensar sobre formas – e normalmente estou – posso pensar em um triângulo dentro de uma caixa retangular:

Eu me pergunto quanto da caixa o triângulo ocupa. Dois terços, talvez? O importante é entender que não estou falando desse desenho de um triângulo em uma caixa. Nem estou falando de um objeto triangular de metal que forma as vigas de uma ponte. Não há nenhum outro propósito aqui. Estou só brincando […]. A própria questão de quanto da caixa o triângulo ocupa nem faz sentido para objetos reais, físicos. Até o triângulo físico feito com a maior precisão é ainda uma complicada coleção de átomos chacoalhantes; ele muda seu tamanho de uma hora para outra […] A questão matemática é sobre um triângulo imaginário dentro de uma caixa imaginária. As extremidades são perfeitas porque eu quero que elas sejam – esse é o tipo de objeto sobre o qual prefiro pensar. Este é um tema corrente em matemática: as coisas são o que você quer que sejam. Você tem infinitas opções; a realidade não é um obstáculo.

Por outro lado, uma vez que tenha feito suas escolhas (por exemplo, eu posso escolher que meu triângulo seja simétrico, ou não), suas criações fazem o que fazem, quer você goste, quer não. Isto é o fascinante sobre criar padrões imaginários: eles respondem! O triângulo ocupa uma certa parte da caixa e eu não tenho controle sobre o quanto ocupa. Existe um número, talvez seja dois terços, talvez não, mas eu não posso dizer qual é.

Então podemos brincar e imaginar o que quisermos, criar padrões e fazer perguntas sobre eles. Mas como respondemos a essas perguntas? Não é nem um pouco parecido com ciência. Não existe um experimento que eu possa fazer com tubos de ensaio, equipamentos e coisas do tipo que me dirá a verdade sobre um fruto da minha imaginação. O único jeito de saber a verdade sobre nossas criações imaginárias é usando nossa imaginação e isso é um trabalho árduo.

No caso do triângulo em sua caixa, eu vejo algo simples e belo:

Se eu dividir o retângulo em duas partes dessa forma, posso ver que cada parte é cortada diagonalmente ao meio pelos lados do triângulo. Então há tanto espaço dentro do triângulo quanto fora. Isso significa que o triângulo deve ocupar exatamente metade da caixa!

É assim uma obra de matemática. Esta pequena narrativa é um exemplo da arte do matemático: fazer perguntas simples e elegantes sobre nossas invenções imaginárias e desenvolver explicações belas e satisfatórias. Não há absolutamente nada como este campo de ideias puras; é fascinante, é divertido e é gratuito!

Mas de onde surgiu essa minha ideia? Como eu pensei em traçar aquela reta? Como um pintor sabe onde pôr seu pincel? Inspiração, experiência, tentativa e erro, pura sorte. Esta é a arte do processo, criar estes pequenos e belos poemas do pensamento, estes sonetos de pura razão. Há algo tão maravilhosamente transformacional nesse tipo de arte. A relação entre o triângulo e o retângulo era um mistério e então aquela pequena reta a tornou óbvia. Eu não conseguia ver, mas então de repente consegui. De alguma forma eu fui capaz de criar uma beleza profunda e simples a partir de nada, e me transformei no processo. Não é isto a arte?

É por isso que é tão doloroso ver o que está sendo feito com a matemática na escola. Esta rica e fascinante aventura da imaginação foi reduzida a um conjunto estéril de “fatos” a serem memorizados e procedimentos a serem seguidos. Em vez de uma questão simples e natural sobre formas e um processo criativo e compensador de invenção e descoberta, é isto que os alunos ganham: “A área de um triângulo é igual à base vezes a altura sobre dois”. É dito aos alunos que decorem esta fórmula e então a “apliquem” repetidamente nos “exercícios”. Foram embora a emoção, a alegria e até mesmo a dor e a frustração do ato criativo. Não há mais nenhum problema. A pergunta foi feita e respondida ao mesmo tempo – não restou nada para o aluno fazer […].

Por remover o processo criativo e deixar apenas os resultados deste processo, você praticamente garante que ninguém terá qualquer engajamento real com o assunto […]. A arte não está na “verdade” matemática, mas sim em sua explicação, no argumento que a constrói. É o próprio argumento que dá à verdade seu contexto, e determina o que está realmente sendo dito e o que se quis dizer. A matemática é a arte da explicação. Se você nega aos alunos a oportunidade de se envolver com essa atividade – de propor seus próprios problemas, fazer suas próprias conjecturas e descobertas, de estarem errados, de serem frustrados criativamente, de serem inspirados, e de juntar suas próprias explicações e provas – você nega a eles a própria matemática. Então não, não estou reclamando da presença de fatos e fórmulas nas nossas aulas de matemática. Estou reclamando da falta de matemática nas nossas aulas de matemática.

Se o seu professor de arte dissesse que a pintura é simplesmente preencher regiões numeradas com cores, você saberia que algo está errado. A cultura informa você – existem museus e galerias, assim como a arte em sua própria casa. A pintura é compreendida pela sociedade como uma forma de expressão humana. Da mesma forma, se o seu professor de ciências tentasse convencê-lo de que a astronomia significa prever o futuro de alguém com base na data de nascimento da pessoa, você saberia que ele está maluco – a ciência entrou na cultura de tal modo que quase todo mundo sabe sobre átomos e galáxias e leis da natureza. Mas se o seu professor de matemática dá a impressão, explicitamente ou não, que a matemática significa fórmulas, definições e a memorização de algoritmos, quem iria corrigi-lo?

O problema cultural é um monstro que perpetua a si mesmo: alunos aprendem matemática com seus professores, e professores aprenderam-na com seus professores, e essa falta de entendimento e apreciação pela matemática em nossa cultura se replica indefinidamente […]. Uma obra de matemática é como um poema; e podemos nos perguntar se ela satisfaz nosso critério estético: esse argumento é bom? Ele faz sentido? É simples e elegante? Ele me leva mais perto do núcleo do assunto? É claro que não há nenhuma crítica na escola – não há nenhuma arte sendo feita para ser criticada! Por que não queremos que nossas crianças aprendam matemática? Será que não confiamos nelas? Pensamos que é muito difícil? Parece que sentimos que elas são capazes de argumentar e chegar a suas próprias conclusões sobre Napoleão Bonaparte. Por que não sobre triângulos? Eu penso que é simplesmente o caso de nossa cultura não saber o que a matemática é. A impressão que nos dão é que é algo frio e altamente técnico, que ninguém poderia possivelmente entender – uma perfeita profecia que cumpre a si mesma. Já seria ruim o bastante se nossa cultura meramente ignorasse a matemática, mas o que é bem pior é que as pessoas realmente pensam que sabem o que a matemática é – e estão aparentemente sob a terrível ideia errônea de que a matemática de alguma forma é útil à sociedade! Essa já é uma enorme diferença entre a matemática e as outras artes. A matemática é vista por nós como uma ferramenta para a ciência e a tecnologia. Todo mundo sabe que a poesia e a música servem para curtir e para elevar e enobrecer o espírito humano (daí sua eliminação prática do currículo das escolas públicas). Mas não, a matemática é importante!


Este texto é um lamento, sem propostas ou conclusões objetivas. Ainda assim é, sem dúvidas, essencial para quem pretende pensar em tais propostas. O texto completo pode ser encontrado em https://slidex.tips/download/lamentos-de-um-matematico, ou o original, em inglês, em https://www.maa.org/external_archive/devlin/LockhartsLament.pdf, e é altamente recomendado, pois inclui críticas mais específicas sobre diversos elementos do currículo escolar.


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