O Sabor do Saber #2 – Olimpíadas, círculos matemáticos e uma sugestão para São Carlos
29/01/2020por Luciano Rocha*
As olimpíadas científicas são competições intelectuais disputadas, geralmente, por alunos do ensino médio e fundamental. A cada ano cresce o número dessas competições no Brasil. Para 2020 estão previstas ao menos 47 olimpíadas científicas em âmbito nacional nas mais variadas áreas, como matemática, física, história e biologia, entre outras.
Historicamente, as olimpíadas de matemática são vanguarda. A primeira olimpíada científica foi a Eötvös Mathematical Competition, competição matemática disputada na Hungria, em 1894. Na época, os 10 primeiros colocados eram premiados com acesso à universidade. No entanto, foi na então União Soviética, a partir de 1933, que as olimpíadas de matemática tiveram maiores resultados e projeção internacional, culminando na realização da primeira olimpíada internacional de matemática, a IMO, em 1959. O reconhecimento nacional dado para os vencedores das olimpíadas soviéticas era comparável aos medalhistas de olimpíadas esportivas da atualidade, recebendo prestígio na mídia e na sociedade em geral.
No Brasil, seguindo a tradição, a primeira olimpíada científica também foi a de matemática. A Olimpíada Brasileira de Matemática (OBM) foi criada em 1979, uma iniciativa da Sociedade Brasileira de Matemática. O investimento em alguns poucos alunos excepcionais descobertos pela OBM trouxeram ganhos impressionantes para a matemática brasileira, o mais notório destes foi a conquista da Medalha Fields pelo brasileiro Artur Ávila, que havia ganhado três medalhas de ouro consecutivas na OBM, entre 1993 e 1995, e uma medalha de ouro na IMO de 1995. A Medalha Fields é considerada muitas vezes o Nobel da matemática, mas com a diferença de que os agraciados precisam ter menos de 40 anos ao recebê-la. Isso demonstra uma prática comum na matemática: a busca e valorização de jovens talentos. Infelizmente, muitas vezes ocorre uma pressão extrema em crianças e adolescentes como consequência.
A OBM chegava em um número bastante reduzido de alunos e, em geral, os premiados eram alunos de escolas particulares tradicionais da elite brasileira. Da necessidade de se pensar um projeto mais abrangente de estímulo ao estudo da matemática com foco em alunos de escola pública, foi criada em 2005 a Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas (OBMEP), que hoje atinge mais de 19 milhões de estudantes e está presente em mais de 99,7% dos municípios, distribuindo 7.500 medalhas anualmente, além de cerca de 48 mil menções honrosas, tornando-se a maior olimpíada científica do mundo. Além da abrangência, um diferencial da OBMEP é que ela não termina na premiação dos melhores colocados: os medalhistas e alguns alunos que receberam menções honrosas são convocados para o Programa de Iniciação Científica Jr. (PIC Jr.), onde recebem aulas em universidades sobre tópicos de matemática avançada, com um viés científico bem diferente das aulas tradicionais. O PIC também inclui uma bolsa no valor de R$ 100,00, valor baixíssimo que não é reajustado desde que esta modalidade foi criada, em 2006, porém que faz a diferença nas famílias de estudantes mais pobres e indicam a possibilidade de prosperar no meio científico. Além disso, os alunos que mais se destacam no PIC podem (ou podiam, como irei explicar mais a frente) ser convidados a participar do Encontro do Hotel de Hilbert (EHH), evento que promove uma semana de palestras e minicursos, além de intensa interação entre jovens matemáticos de todo o Brasil. Esse é o ápice do projeto, quando apresenta a ciência em seu caráter social, juntando estudantes cuja única afinidade em comum, a princípio, é a matemática.
Tive a oportunidade de percorrer esse caminho diversas vezes e posso afirmar que um adolescente pobre pegar um avião pela primeira vez rumo a um encontro científico tem um enorme impacto na cabeça e na vida não apenas do estudante, mas da sua família inteira. Foi assim que decidi me tornar um matemático. Mas aqui vale uma observação: minha experiência na OBMEP foi de 2010 a 2015. A partir de 2016, com o aprofundamento do desmonte das políticas educacionais dirigidas pelo governo instaurado após o golpe parlamentar, a situação mudou bastante e a olimpíada esteve sob sérios riscos de não ocorrer. No entanto, ela sobreviveu mesmo com os cortes exorbitantes que causaram a necessidade de forte racionamento humano e financeiro. A partir de então os alunos de lugares mais isolados deixaram de participar das atividades do PIC antes presenciais com o objetivo de economizar com translado e, desde 2016, o EHH ocorreu apenas uma vez, em 2018, sem previsão de uma nova edição. Essas mudanças abrem mão da interação entre os jovens cientistas e perpetuam a ideia da ciência como um trabalho isolado e solitário.
Apesar disso, a OBMEP, ao contrário da OBM, continua possuindo um enorme viés social e, segundo estudos, as escolas que se empenham na preparação para a OBMEP possuem desempenho significantemente superior em índices baseados em testes governamentais padronizados. Porém, a utilização de competições para estimular o interesse em matemática possui limitações. Além de desenvolver a competitividade e individualismo desde cedo, em não raros momentos geram alunos frustrados, obtendo o efeito contrário, de desestímulo. Desta forma, apesar de olimpíadas como a OBMEP serem iniciativas importantes e com grandes resultados, é preciso pensar em uma alternativa de atividade extracurricular que estimule o interesse de alunos em matemática de forma científica e lúdica, buscando a discussão e a construção coletiva do conhecimento (afinal, é assim que a ciência funciona), driblando assim o individualismo e a competitividade. Este apontamento me foi feito durante uma conversa em 2014 com o matemático Ilia Itenberg, co-autor do livro “Círculos matemáticos: A experiência russa”, utilizado no PIC, então resolvi me aprofundar na experiência russa.
Durante o século XX, chama atenção a grande tradição matemática constituída na União Soviética. E é impossível falar na educação matemática soviética sem falar dos círculos matemáticos (e vice-versa). Esses seguiam a tradição dos Kruzhok (círculos), que consistiam na livre reunião de pessoas em torno de um tema, como política e literatura, com periodicidade semanal, conduzidos por um guia. Trata-se assim de uma experiência educativa informal onde não há obrigatoriedade, não se fazem provas e não se outorgam títulos, e ainda assim é extremamente séria, pois é uma prática cuidadosamente pensada. Esses grupos tinham, em média, 15 alunos e seus principais objetivos eram proporcionar um maior nível de cultura matemática através do estudo ativo e profundo de diversas áreas (incluindo sua história e a familiarização com problemas contemporâneos), desenvolver habilidades lógicas, criar um grupo de alunos ativos, apoiando o professor ou guia em seu trabalho diário (como o auxiliando a conduzir projetos de maior envergadura ou ajudando alunos com maior dificuldade) e, por fim, descobrir jovens talentos. A formação de um círculo matemático poderia ser feita de várias maneiras, nenhuma delas através de qualquer tipo de exame. Em geral, eram conduzidos por professores universitários, alunos graduados ou em seus últimos anos de estudos. Diversos desses círculos foram formados nas principais cidades soviéticas, atingindo o ápice nos anos 50 e 60, quando cidades como Moscou e São Petersburgo contavam com extensas redes de círculos (e ainda hoje contam com uma quantidade expressiva, mesmo que nem perto de outrora).
É importante ressaltar que os círculos matemáticos não constituíam um movimento isolado. Ele era articulado com um esforço conjunto por uma educação formal de qualidade e outras atividades extracurriculares, como olimpíadas, acampamentos e eventos matemáticos, conferências populares, revistas, etc. A educação extracurricular soviética educou os melhores matemáticos russos nascidos após 1930 e dotou a União Soviética de uma formação matemática de especial relevância internacional e reconhecimento dentro da sua sociedade. O sistema educacional era pensado por brilhantes matemáticos que deram importantes contribuições em diversas áreas, com destaque para Andrei Kolmogorov, que idealizou a Reforma de Kolmogorov implementada em 1966. Nesta época era notável o esforço de matemáticos de alto calibre, como Andrey Tikhonov e Pavel Alexandrov (seu orientador), além do já citado Kolmogorov, em formar a nova geração de matemáticos.
É claro que países em épocas diferentes possuem contextos diferentes e não estou aqui advogando pela simples cópia do modelo soviético. Mas desde a década de 90 existem iniciativas fora da Rússia razoavelmente consolidadas, geralmente criadas por emigrantes do leste europeu e adaptadas às necessidades locais. Nos Estados Unidos, por exemplo, foi criada a Associação Nacional de Círculos Matemáticos (mathcircles.org), que hoje reconhece aproximadamente 100 círculos matemáticos ativos pelo país, além de outra centena dos chamados Círculos Matemáticos para Professores (mathteacherscircle.org), um programa de formação de professores baseado em círculos. Das experiências com maior êxito, destacam-se o círculo matemático de Boston (apoiado por diversas universidades da região, como Harvard, MIT, Tufts e Northeastern) e o círculo matemático de Berkeley (apoiado pela Universidade da Califórnia). Este último possui mais de 500 alunos e foi fundado pela matemática húngara Zvezdelina Stankova, que em 2011 foi premiada pela Sociedade Estadunidense de Matemática com o Prêmio Haimo de melhor professora de matemática a nível nacional.
Muitos desses círculos não nasceram exatamente nas universidades, mas em cidades que possuíam uma certa cultura científica (mesmo que centralizada) proporcionada por universidades de ponta e logo foram apoiados por essas. Imagina se morássemos em uma cidade assim… Espera, moramos! Como é sabido, São Carlos possui a maior proporção de doutores por habitante do país, e na cidade se encontram duas universidades de ponta, a USP e a UFSCar. Ambas as universidades possuem excelentes programas de matemática, com pesquisadores de renome internacional. Temos então todas as condições em termosde recursos humanos e estrutura física para abrigar uma iniciativa dessas. Quem sabe podemos tornar os círculos matemáticos uma realidade no Brasil!
*graduado em Matemática pela USP São Carlos