O Conde escravocrata de São Carlos do Pinhal
18/09/2020A história de uma ambição familiar de 3 gerações que comandaram os destinos de milhares de escravizados e milhares de hectares em grande parte do estado de São Paulo. Sua maior figura foi o advogado que virou Conde, Antônio Carlos de Arruda Botelho, que com o monopólio da terra construiu um poderoso clã político familiar. Seu nome hoje está em ruas e monumentos de nossa cidade.
As minas de ouro em Minas Gerais e em Goiás serão os motores da conquista durante o século XVIII no Oeste Paulista. Para tal empreendimento foi necessário garantir segurança, alimentos, montaria e manutenção das estradas para as tropas que por ali passariam.
A conquista portuguesa do Picadão de Cuiabá tinha também como objetivo a expulsão dos povos originários Guaianás e depois os Caiapós assim como os quilombolas que habitavam a região.
A conquista do Oeste e o nascimento de um clã
O sargento-mor Carlos Bartholomeu de Arruda Botelho foi o primeiro a entrar na conquista do Oeste paulista com uma concessão da sesmaria do Pinhal. Em apenas dez anos comprou mais 3 sesmarias, sendo uma no que seria Araraquara, outra vizinha a Pinhal e uma terceira em Piracicaba, em 1795.
O sistema implementado pelos portugueses no país e também na região consistia em estabelecer ocupações militares e promover expulsão de autóctones para manter caminhos e novas paradas, tanto para o transporte do ouro como para a incorporação de terras para a produção agrícola de exportação e consumo interno. As vilas ou freguesias funcionavam como postos militares de avançada de cidades maiores onde o território estava dominado militar e economicamente. Isto ficou estampado em muitos escudos municipais em sua parte superior com as torres de defesa.
Em escritos da época podemos ver as preocupações destes conquistadores. “Sr General (Antonio Jose da Franca e Horta) houve por bem encarregar ao sargentomor Carlos Bartholomeu de Arruda Botelho de atacar um quilombo de negros fugitivos, e lhe deu ordem para conduzir consigo a gente que lhe fosse necessária, o que participo a Vmcê para que não só o não embarace, mas antes lhes preste todo o auxilio que puder para tão interessante diligencia”, documento transcrito em História de Piracicaba.
Compra e Venda
As Sesmarias funcionavam como contrato entre Estado e privado, muitas vezes um funcionário público, que recebia um premio por conquistar o território de ameaças indígenas, quilombolas e espanhóis. Títulos oficiais que podiam ser vendidos e comprados gerando especulação imobiliária. Assim como no resto do país, o oeste paulista vai aos poucos se incorporando ao mercado mundial como um imenso latifúndio ao mando dos barões, viscondes, condes escravistas e suas famílias.
A fazenda Monjolinho, por exemplo, parte atual do município de São Carlos, teve origem na venda do Capitão General Horta ao Sargento-mor Bicudo e o Tenente Paes que logo as revenderiam em 1814 a Nicolau Pereira de Campos Vergueiro. Este homem não era qualquer um, foi o maior comerciante de escravizados do estado de São Paulo. Este seria o negócio mais importante que suas duas propriedades em Rio Claro e Limeira. A proibição do tráfico negreiro externo fez com que muitos traficantes investissem o capital acumulado em fazendas para a produção agrícola de exportação. Em pouco tempo o café seria o principal produto de exportação brasileira, primeiro no Vale do Paranaíba, no Rio de Janeiro, e logo por São Paulo subindo a serra até o interior paulista.
Os primeiros passos de um Patriarca
Com o clã já bem estabelecido, mandam para São Paulo o jovem herdeiro Antônio Carlos para estudar Direito na Faculdade Largo São Francisco. Dois anos depois de formado assume como Inspector de Instrução Pública e Estradas de Araraquara em 1859. A trajetória política/empresarial deste jovem advogado marcará para sempre a São Carlos e toda região oeste do estado.
Com respaldo da família, Antônio Carlos será nomeado, assim como seu pai e seu avô, Tenente-Coronel da Guarda Nacional, soma-se a isso seu matrimônio que possibilitou união com outro forte clã da região, os Estanislau de Oliveira. Nesse contexto, sua força política será tal que se fez eleger deputado estadual por cinco anos até 1869, assim como separou São Carlos de Araraquara formando a primeira Câmara Municipal em sua própria casa.
Entre 1865 e 1870, a Guerra do Paraguai, além de dizimar a população paraguaia, deixou 5 mil mortos brasileiros. São Carlos era um ponto estratégico para abastecer as tropas do exército durante o conflito. Antônio Carlos, como membro da Guarda Nacional, garantiu o fornecimento de víveres, manutenção das estradas e conseguiu “voluntários” para as filas brasileiras. Tão valorizada foi pela monarquia dita colaboração que Antônio Carlos ganhou a promoção a Coronel-Comandante Superior da Guarda Nacional e foi nomeado Oficial da Ordem da Rosa. Estes seriam apenas os primeiros de vários reconhecimentos que coroa o daria até seu fim.
Os irmãos de Antônio Carlos, Bento Carlos, João Carlos e Paulino Carlos de Arruda Botelho ajudaram ao clã manter o controle político de São Carlos. Foram Juízes de Paz ou Suplentes, Delegados de Polícia e Deputados. Além disso, o poder também estava nas armas do exército, ser membro da Guarda Nacional era indispensável para mandar. Assim tiveram também patentes de Capitão, Tenente-Coronel e Alferes. Os pobres deviam se contentar com serem eternos praças a serviço dos escravistas.
Um escravista visionário
Para 1860 fica implementado o café no lugar da cana, os custos de mão de obra era bem menores. Enquanto a planta da cana precisava ser replantada a cada três anos, o pé de café a cada 30 ou 40 anos e seu transporte para o porto de Santos era mais rentável. A vantagem climática e terras “virgens” do Vale do Paranaíba em seus começos deu lugar depois a São Paulo e seu interior.
Antecipando-se dois anos antes do Congresso Agrícola, Trabalho Escravo e Imigração realizado no Rio de Janeiro em 1878, o futuro Barão do Pinhal financiou a primeira colônia de imigrantes alemães em São Carlos. Não temos mais dados sobre a colônia e suas 100 famílias, exceto pelo fato de que o experimento não prosperou (falta de condições de moradia, saúde, alimentação, educação? Ou talvez os capatazes não sabiam diferenciar “bem” entre escravizados e novos estrangeiros?).
A década de 1880 será uma parte importante da escalada do agora Visconde do Pinhal/São Carlos nos espaços políticos do velho e futuro estado dos fazendeiros escravistas dedicados à exportação.
Modernizando a escravidão
Para amortizar a perda de seus escravos e de seus pares, o futuro Conde se fortaleceu politicamente se elegendo deputado estadual até 1887, assumindo nada mais e nada menos que a chefia estadual do Partido Liberal e a Presidência da Câmara Legislativa de São Paulo em 1883. O futuro do colonialismo e do lucro exigia uma visão aguda e ela vinha de trem.
Em 1884, São Carlos com mais de 3.700 escravizados presenciou a chegada da Companhia de Estrada de Ferro Rio Claro pregar os trilhos da modernidade juntos às correntes da escravidão. O Conde fez que a nova linha férrea passasse nos pontos de sua conveniência, de São Carlos a Araraquara, passando inclusive por Jaú, favorecendo seu sogro e aliado Estanislau de Oliveira. Enquanto as novas locomotivas chegavam, a liberdade e a cidadania dos negros continuariam negadas.
Os riscos de ser abolicionista em Araraquara
Um grupo de fazendeiros liderados pelo Major Pinto Ferras e o Coronel Leite Moraes frente ao Juiz de Paz exigiam “por delegação da soberania popular” a expulsão do abolicionista Antônio Henrique da Fonseca. Também foram ameaçados o escrivão Ferraz Lopes “sob pena de lhe tirarem o couro” caso envolve-se e o vigário Fusco caso desse certidão de idade aos escravos.
Um interessante evento resgatado por Emília Viott em seu livro Da Senzala à Colônia mostra a quem deve responder o Estado e suas autoridades.
O próprio Juiz narra a sanha racista que durante uma manhã de 1883 juntou mais de 250 pessoas com o Major Joaquim Pinto “incitando os ânimos contra a vida de Fonseca”. Como uma horda vingativa “dirigiram-se à casa do escrivão de Paz, Querubim Ferraz Lopes, invadindo-a pela frente e pelos fundos depois de varejarem e não o encontrando, dispersou-se o grupo”.
Não existem relatos da participação de Antônio Carlos, nem que estivesse na cidade durante os fatos. O Conde tinha planos mais audaciosos que retrasar o que ele já tinha, há muito tempo, retrasado. Com o monopólio da terra garantido pelo Estado e a exclusão das novas capas urbanas, imigrantes e ex escravizados ao acesso a terra e a representação política, era momento de expandir.
O apogeu da república colonial
O golpe militar da “nova” República do Café com Leite abriu passo para que o ex Conde se transforma-se de escravista e exportador em homem de negócios respeitado pelos seus pares. Aprendeu com sua Casa Comissária em Santos que o dinheiro não estava só na produção do café ou seu transporte, mas também no financiamento de produtores através de empréstimos sobre as colheitas futuras. Ao ver isso decide vender a Companhia de Estrada de Ferro Rio Claro e abrir o Banco de São Paulo, por onde financiaria não só seu clã como seus sócios e aliados políticos.
Dando certo a primeira empreitada bancária na capital paulista, o então senador de Arruda Botelho inaugurou o Banco União de São Carlos e o Banco de Piracicaba, ambos em 1891. Tudo ficou sacramentado nas páginas do jornal Correio de São Carlos fundado pelo próprio ex Conde dois anos antes.
Longe ficou aquele primeiro cafezal do pai Carlos José em 1840. Seu filho, 52 anos depois, formaria com a compra de 9 cafezais a Companhia Agrícola de Ribeirão Preto deixando, junto a outros bens, um patrimônio enorme para futuras gerações da elite de nossa região.
Antônio Carlos de Arruda Botelho morre em 1901 deixando um legado escravocrata que não será esquecido por aqueles que viveram e sofreram baixo o domínio de seu clã.
A voz da escravidão
Para o centenário de São Carlos, 1957, Felício, filho de Felício, sem mais origem que ser escravo propriedade de Antônio Carlos de Arruda Botelho, fez suas as palavras de seu pai e de milhares de ex escravos excluídos da “nova” sociedade brasileira e sãocarlense. Publicando a carta de seu pai, que escrevera em 1917 denunciando a seu ex amo e seu clã.
Provavelmente com 70 anos, Felício escreveu sobre “quando tinha 14 annos elle acho o sufficiente pra ser feitor eu chorei nos pez delle que não queria ser feitor mas elle diss que escravo faz o que a senhoria manda”.
No armazém de secos e molhados na Freguesia de São Carlos do Pinhal, comércio do Conde, o ex escravo detalhou seu trabalho: “Depos elle acho tãi sufficiente a minha pessoa me poz para cacheiro de barcão na loja. As couza miuda eu vendia mas quando era conta grande chamava elle na loja. Eu quando era noite entregava a chave da loja a elle e chegava cedo eu abria a loja espanava e depois sentava na cadeira como um fidalgo a esper de quem viesse comprar, um anno levei esta vida assi depois elle abrio uma padaria eu com um preto que elle tinha.”
A história oficial rende homenagem ocultando e apagando as partes indesejáveis de nossa elite. Homens que implementaram seu “progresso” e sua “ordem” excluindo a maioria não branca inclusive aos recém chegados imigrantes.
Quando nos perguntamos sobre o porquê de nosso racismo, deveríamos olhar para os nomes de nossas ruas, praças e monumentos. Sem racismo o Brasil não seria o que é, assim também São Carlos.
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