Meu pinto não é uma arma
10/06/2020Como Madonna, quem tem a obra estampada no Mural desta quarta-feira se apresenta com um único nome: Anne. E a obra é um monólogo teatral, algo diferente do que tínhamos até então. Anne, que mora no Centro de São Carlos, faz parte de um grupo de teatro chamado Olho Nu Olho e escreveu uma curta peça “mais-ou-menos-autobiográfica, que me fala sobre relações do eu com o corpo e expectativas de gênero que constroem a ambos”.
Meu pinto não é uma arma (Anne)
Capítulo 1. Nossa história começa na manhã de 3 de outubro de 1997. Nasce uma criança.
[Tom de surpresa] Ah, como pude ser tão irresponsável? Me perdoem:
Prólogo. A ação de um gene ligado ao cromossomo Y desvia completamente o desenvolvimento dos ovários, fazendo deles testículos. Por volta da décima segunda semana de gestação, as gônadas sexuais do embrião se diferenciam por completo. Mas não se preocupem, nós garantimos que o processo é natural e acontece com quase metade dos seres humanos.
Nossa história começa na manhã de 3 de outubro de 1997. Não nasce uma criança. Nasce um menino.
E o menino corre, entre patos e vacas, cenouras e jacas ao lado de uma única e semelhante figura. Com seu irmão, até aprende a amar, mas não muito, aprende mesmo é a lutar. Aprende mesmo é a perder, e a chorar, mas não muito! Engole esse choro e dá
um MURRO na cara dele.
Passam os anos e, como um cão levado ao veterinário, nosso protagonista se vê metido numa grande jaula de conhecimento compulsório, cheia de crianças ávidas por suas mães. Ou melhor, crianças não, meninos e meninas. Isso ele aprende logo no primeiro dia.
- Por algum motivo, diferente lá de casa, aqui tem dois banheiros – estupidamente posicionados, um bem ao lado do outro. Sobre cada porta, um quadro encardido, em cada quadro, uma criança genérica sentada ao penico.
O menino nunca iria se esquecer que pela porta da esquerda não se pode entrar. Não soube bem o porquê, mas teria sido menos vergonhoso urinar nas calças ali mesmo, diante das duas portas.
“O que você pensa que tá fazendo no banheiro das meninas?” Disse sua veterana do alto de sua autoridade, aos sete anos de idade.
Nosso protagonista, aos sete, já sabia bem seus pronomes e banheiros adequados. Foi mais ou menos nessa época que, junto de seu irmão, aprendeu com o pai e um cabo de vassoura, a forma correta de se colocar um preservativo. Não vá sair por aí atirando filho no mundo!
Aos 10, já não podia ir a uma festinha de aniversário sem levar ao menos uma camisinha no bolso, por ordem do pai. O inofensivo clitóris mutante mencionado em nosso prólogo já não é tão inofensivo…
- devia ter desconfiado quando um tio referiu-se a “pênis” como “pistola” pela primeira vez. E todo mundo deu risada.
E assim, entre regras e proibições dignas de ficção científica, vem se aproximando a tão prometida puberdade – quando todos os estereótipos farão sentido, e os corpos ansiosos ocuparão seus devidos lugares.
O processo é longo e solitário, permeado pelos mais absurdos rituais de adolescência. Junto com os cravos e espinhas, brotam também as perguntas:
será que devia nascer pelo aqui?
Será que não devia nascer pelo aqui?
E isso, não era pra tá maior a uma hora dessas?
Correndo em círculos, ninguém mais sabe o que quer pra si ou o que os outros querem. A única certeza é que o livro de biologia mentiu pra todo mundo. Os corpos continuam ansiosos, mais ansiosos. A distribuição muscular e linfática não corresponde às expectativas, as estaturas e biotipos estão uma completa bagunça! E a quem vamos culpar? A professora de biologia cristã e fiel ao criacionismo?
Já não dá tempo para tais questionamentos, se os hormônios não deram conta, pois alcance você o lugar que lhe cabe. Academia, depilação, nutricionista. E vê se dá um jeito nessa sua iniciação sexual, porque acaba de crescer o número de homens no mundo e eles precisam de satisfação, pois têm um árduo trabalho pela frente na manutenção da indústria bélica.
Que foi? Se perdeu no meio das metáforas? Pois pode entrar na fila, você é um deles.
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