Esqueça Neymar: jogador de futebol trabalha muito e recebe pouco

Esqueça Neymar: jogador de futebol trabalha muito e recebe pouco

15/05/2021 Off Por Equipe Tribuna

A imensa maioria dos jovens que perseguem o sonho de levantar uma taça da Copa do Mundo encontram condições precárias e poucas perspectivas de sucesso.

 

O futebol moderno é um verdadeiro espetáculo. É também um enorme sucesso financeiro: o esporte movimentou cerca de 53 bilhões de reais em 2018, causando um impacto de 0,72% no PIB nacional segundo levantamento da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Aliado a isso, costumamos acompanhar atletas milionários nos entretendo na TV. Tendemos então a acreditar que esse é o perfil de todos os jogadores de futebol. No entanto, o panorama no esporte não é diferente da realidade do proletariado brasileiro: mais da metade dos jogadores de futebol profissionais no Brasil recebem menos de um salário mínimo, ou seja, eles jogam para sobreviver. 

 

Desigualdade salarial

A remuneração dos atletas profissionais é composta do salário na carteira de trabalho mais um adicional de direito de imagem. Segundo a lei, o valor do direito de imagem não pode superar 40% do valor total da remuneração do atleta. Assim, se um atleta recebe R$2.000,00 de um clube, um máximo de R$800,00 podem vir dos direitos de imagem (ou, equivalentemente, um mínimo de R$1.200,00 devem vir como salário assinado em carteira). O valor em direito de imagem não reflete nas verbas legais trabalhistas, isto é, não entram no cálculo de FGTS, férias, 13º salário, entre outros. 

Artifícios semelhantes são utilizados por patrões de diversas categorias para burlar e atacar direitos trabalhistas. Por exemplo, professores de estados e municípios não costumam receber o piso salarial estabelecido pelo Ministério da Educação em conformidade com a lei 11.738/2008, tendo seus reajustes feitos através de abonos e gratificações que não entram em cálculos trabalhistas. Este foi o caso do reajuste salarial dos professores do Estado de São Paulo em 2020. Em 2013, professores das redes públicas estaduais de quase todos os estados se uniram em uma mobilização nacional pelo pagamento do piso salarial, que era devidamente pago por apenas quatro estados (Acre, Ceará, Pernambuco e Tocantins) e o Distrito Federal.

Dos mais de 360 mil jogadores e jogadoras de futebol registrados no sistema da CBF (dados de 2018), apenas 25% são considerados atletas profissionais, por atuarem em cumprimento a um contrato formal de trabalho desportivo. Os outros 75% são considerados amadores, ainda que vivam do futebol através de vínculos informais. Destes 90 mil atletas considerados profissionais, apenas 11.683 possuíam contratos ativos em 2018, sendo 11.551 homens e 132 mulheres. Este minúsculo recorte de cerca de 3% dos atletas registrados na CBF constitui a parcela com vínculo empregatício sólido, e ainda assim enfrentam dificuldades e desigualdades.

Abaixo temos um gráfico que ilustra a distribuição dos salários mensais registrados na carteira de trabalho deste grupo de 11.683 atletas profissionais com contratos ativos no Brasil. Vale lembrar que estes valores desconsideram os direitos de imagem, que podem não existir ou chegar a até 40% da remuneração total.

Faixa salarial de atletas profissionais com contratos ativos no Brasil. Fonte: CBF.

Mais da metade destes atletas (55%) recebem menos de um salário mínimo, e 88% deles recebem menos de R$5.000,00. Essa distribuição é bastante similar à distribuição de renda da população como um todo. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 40% dos brasileiros recebem menos de um salário mínimo e 90% recebem menos de R$5.000,00.

Outro importante recorte a se fazer é o regional. Em 2018, absolutamente todos os atletas que recebiam mais de 500 mil reais mensais atuavam no Sudeste, enquanto o maior salário de um atleta atuando no Norte do país era de 13 mil reais, região onde 89% dos atletas recebem cerca de mil reais de salário.

Média salarial por região (em mil). Fonte: CBF.

 

Lembremos que esses dados correspondem aos 3% dos jogadores de futebol com melhores vínculos trabalhistas. Acreditar que o Neymar representa o perfil do atleta de futebol brasileiro seria como acreditar que o empresário Jorge Paulo Lemann, o homem mais rico do país, representa a classe trabalhadora brasileira. 

 

Recorte de gênero

O levantamento da CBF de 2018 mostrou que apenas 132 mulheres possuíam contrato profissional, frente a 11.551 homens. É possível que esse número tenha aumentado desde 2019, ano em que entrou em vigor uma exigência da Confederação Sul-americana de Futebol (CONMEBOL) que estabelece que os times masculinos só podem disputar a Copa Libertadores da América e a Copa Sul-americana se possuírem times femininos adulto e de base. No entanto, os dados são escassos.

Segundo levantamento da Folha de 2019, apenas 8 dos 52 clubes que disputam os campeonatos brasileiros possuem 100% do elenco profissionalizado. Os outros clubes pagam as jogadoras das mais variadas formas, quase todas sem qualquer vínculo trabalhista. 

Equipes menores costumam fornecer apenas ajuda de custo, por vezes em parceria com prefeituras, como é o caso da Ponte Preta (SP) e da Ferroviária (SP), atual campeã da Libertadores da América. Já a equipe paraense ESMAC (Escola Superior Madre Celeste) oferece a faculdade como pagamento. O Flamengo possui parceria com a Marinha do Brasil e todas as atletas participam do edital para se tornarem 3º sargento. O Avaí Kindermann (SC) usa projetos de Leis de Incentivo, o que não permite custear salário algum para as jogadoras.

Em levantamento da Secretaria da Previdência e Trabalho, antigo Ministério do Trabalho, foi obtido que os profissionais do futebol masculino ganham, em média, 118% a mais que as do futebol feminino. Assim, não muito diferente do contexto trabalhista geral, a precarização do trabalho no futebol afeta especialmente as mulheres.

 

Direitos trabalhistas

Ao olharmos para um jogo futebolístico e vermos um espetáculo pomposo em vez de 22 jogadores trabalhando para sustentar suas famílias, demonstramos a alienação em torno do futebol. O principal impacto dessa alienação é a perda de direitos trabalhistas.

A regulamentação da profissão do futebolista ocorre através da lei 9.615 de 1998, conhecida como Lei Pelé. Ela aborda diversas temáticas específicas dessa atividade laboral, como quem responde legalmente pelo empréstimo de um jogador a outro clube. Porém, a Lei Pelé ainda possui falhas ao deixar muitas práticas sem regulamentação, como, por exemplo, ao não exigir um tempo mínimo entre uma partida e outra. Em 1994, Juninho Paulista entrou em campo duas vezes no mesmo dia pelo São Paulo. Hoje em dia, essa prática é proibida pela CBF, entidade privada, mas não pela Constituição Federal. 

Ainda assim, os jogadores tiveram importantes avanços na regulamentação de sua atividade. Mas acreditar que direitos são concedidos apenas pela força da caneta seria ingenuidade e juspositivismo. No artigo 34 da Lei Pelé exige-se do clube “proporcionar aos atletas profissionais as condições necessárias à participação nas competições desportivas, treinos e outras atividades preparatórias ou instrumentais”. Do contrário, os jogadores podem fazer denúncia ao Ministério do Trabalho. 

No entanto, não são raros os casos em que esse direito é desrespeitado. Recentemente, jogadores do futebol masculino do Iranduba (AM) denunciaram péssimas condições de trabalho, relatando um caso em que um jogador torceu o tornozelo em treino e precisou voltar andando para casa. Não trata-se de um clube sem expressão: apesar do apagamento no futebol masculino, o Iranduba já chegou a ser o 6º melhor time brasileiro de futebol feminino, segundo ranking da CBF em 2016.

Desde a origem da Lei Pelé, o atleta tem o direito de recusar a prestação de serviços caso o clube deixe de honrar seus compromissos. Assim, se seu salário atrasar um dia sequer, o trabalhador pode se recusar a jogar enquanto o problema não é sanado. Caso este atraso seja de três salários, o profissional pode pedir rescisão contratual com cláusula indenizatória, assim como se houver falta de recolhimento de três meses de FGTS. No entanto, a alienação ao redor do trabalho dos jogadores faz com que esse seja um direito muito difícil de se concretizar. 

Em entrevista ao Globoesporte de Alagoas, o atleta Fábio Alves, ex-jogador do ASA, diz que não se sente protegido pela legislação: “Nenhum jogador se sente. As leis até que melhoraram um pouco, mas fica difícil você colocar o clube na justiça quando o campeonato ainda não acabou. É o certo, mas fica complicado porque o clube perde ponto se ele ficar devendo jogadores com o campeonato em andamento. Agora, imagine se o time perde três ou, sei lá, seis pontos porque você colocou o clube na justiça. Os torcedores nunca iriam entender uma situação dessa, e tudo acabaria da pior maneira possível.“

“O funcionário trabalhou e tem que receber, é direito dele!”. Foto: Leonardo Freire/GloboEsporte.com

Fábio colocou o time para o qual trabalhava na justiça depois de inúmeros atrasos no pagamento dos chamados direitos de imagem. Na época, recebeu xingamentos e ameaças por parte da torcida, que o taxou de mercenário: “Torcedor vê jogador como um Ronaldinho, um Robinho, um Neymar, eles generalizam! Acham que recebemos salários gigantescos, que todos só querem saber de farra e mulherada, não é bem assim não. Nós dependemos do nosso salário, e ficar um, dois, três meses sem receber não dá, chega uma hora que você não tem cabeça para treinar e jogar. Nós não temos outra renda, então passamos muita dificuldade. Veja o caso do Michel Bastos no São Paulo, ele passou por isso e todos o chamaram de mercenário, só porque o cara cobrou a diretoria por o salário dele estar atrasado. Isso não existe! O funcionário trabalhou e tem que receber, é direito dele!”

O caso ao qual Fábio se refere foi o pacto de silêncio firmado por jogadores do São Paulo de não dar entrevistas até que os direitos de imagens atrasados fossem pagos. Após o protesto gerar polêmica, o jogador Michel Bastos recebeu xingamentos de parte da torcida enquanto jogava contra o Novorizontino, mesmo marcando um gol. Michel é um jogador reverenciado que já atuou pela seleção brasileira. Um jogador menos conhecido certamente teria sido demitido. Outro caso que recebeu atenção foi quando o atacante Keirrison, que também já atuou na seleção brasileira, preferiu não entrar em campo pelo Coritiba após ficar cinco meses sem receber salários e ter de arcar com uma cirurgia no joelho causada por uma lesão enquanto atuava pelo clube.

São inúmeros os casos do tipo. Os que ganham notoriedade, em geral, ocorrem em grandes clubes. Se jogadores renomados que já passaram pela seleção brasileira e atuam nos times de elite do eixo sul-sudeste passam por situações do tipo, quantos outros casos ocorrem com aqueles 55% dos jogadores que ganham menos de um salário mínimo? Quantas famílias de jogadores de futebol ficam sem saber se vão comer no mês seguinte por conta de salários atrasados do qual não podem, na prática, reclamar?

 

Pandemia 

Com a pandemia do Coronavírus, várias atividades foram paralisadas e o que já estava difícil, piorou. Com a paralisação dos campeonatos, diversos jogadores de futebol ficaram completamente desamparados pelos clubes e pelo Estado. Em maio de 2020, o presidente Jair Bolsonaro vetou a inclusão de jogadores de futebol de baixa renda para o recebimento do auxílio emergencial. 

Como resposta, a Federação Nacional de Atletas Profissionais de Futebol (FENAFAP) mobilizou a categoria para reverter o veto. Em vídeo, uma campanha juntou jogadores famosos, como Diego Ribas (Flamengo), D’Alessandro (Internacional) e Felipe Melo (Palmeiras), com jogadores de times menores para sensibilizar a população das desigualdades que existem dentro do futebol. “Eu reconheço meus privilégios, e sei que não preciso desse auxílio”, diz Felipe Melo no vídeo. “Mas pra mim, esse auxílio não é privilégio, é sobrevivência”, complementa Alex Dida, goleiro do Atlético Acreano. A FENAFAP emitiu também um nota, em que afirma que “o futebol brasileiro é nossa maior paixão, depois de nossas famílias e supridas as nossas necessidades”.

Outra medida que prejudicou os jogadores foi a Lei 14.117, promulgada pelo presidente Bolsonaro no último 29 de abril, que desobriga o recolhimento do FGTS e contribuições previdenciárias pelos clubes durante o período de calamidade pública ao qual o Brasil foi colocado e até 180 dias depois dela. Assim, o artigo da Lei Pelé que deixava o jogador livre para procurar outro clube caso o recolhimento não tivesse sido feito por um período de três meses foi suspenso. Mais uma vez, temos os mais vulneráveis pagando a conta.

Dada a falta de alternativa, a maioria dos jogadores apoiam a volta dos campeonatos, pressionados também pelos seus clubes, que por sua vez são pressionados pela CBF, patrocinadores e emissoras de televisão. Para vislumbrarmos a dimensão dessas pressões, basta vermos que até maio de 2020, a maioria dos clubes de elite era contra o retorno dos campeonatos. Já no último dia 10 de março, o presidente da CBF, Rogério Caboclo, reuniu-se com dirigentes de times das séries A e B do Campeonato Brasileiro para coagi-los a dar andamento aos campeonatos no período mais crítico da pandemia. 

“Vocês estão fodidos se não tiver [campeonato]”. Vídeo: Venê Casagrande.

Nessa reunião, que teve vídeo vazado, Caboclo afirmou: “Por gentileza, vamos pensar agora. Nós podemos parar o futebol? A Rede Globo não quer, ninguém quer, os seus patrocinadores não querem. E se parar, sabe quando nós teremos a segurança de dizer quando a gente pode voltar? Nunca. No dia que o prefeito de São Nunca dizer que pode. Eu não vou estar a mercê de nenhum deles. Eu vou mandar no futebol brasileiro e vou determinar que vai ter competição. Porque vocês estão fodidos se não tiver”.

A fala do presidente da CBF deixa cristalina a estrutura atual do futebol brasileiro, instituição tomada há décadas por escândalos de corrupção, que participou ativamente da mercantilização do futebol nacional e internacional (não esqueçamos de João Havelange!). Enquanto isso, a vida do trabalhador do futebol e sua família não é nem levada em consideração. 

Em novembro do ano passado, o técnico Cuca, que levou o Santos à final da Libertadores da América, passou 10 dias internado por ter contraído o coronavírus. Cuca foi contaminado em um surto ocorrido no Santos que infectou mais de 30 pessoas e o levou para a UTI. Por tabela, sua família inteira foi contaminada, levando seu sogro a falecer. Poucas semanas depois, o técnico e ex-jogador Marcelo Veiga, que dirigia o São Bernardo na Copa Paulista, também faleceu. 

Zé Antônio, que jogava no Joinville (SC) até 14 de março deste ano, decidiu paralisar a carreira após também perder o sogro para a COVID-19. Em entrevista ao jornal catarinense O Município, o jogador, que já testou positivo para o vírus em janeiro, declarou que tem medo de se contaminar novamente e dessa vez contaminar também a esposa e o filho. 

Ao denunciar a desunião dos jogadores, ele afirma que os atletas estão sendo alvo de chantagem ao reproduzir o discurso de “preciso trabalhar para sustentar minha família”. Zé ganhou notoriedade ao liderar, em 2019, uma greve no Figueirense (SC) por salários e direitos de imagem atrasados. Como resultado, a Elephant, empresa gerenciadora do time, anunciou sua saída da diretoria. Ele acredita que seria possível que a CBF aderisse a outras metodologias que não colocassem os jogadores em risco: “É possível criar uma ‘bolha’, por exemplo, como fizeram na NBA e Champions League, porém, as federações não querem que o dinheiro pare”. O jogador diz que só volta a jogar depois das vacinas.

 

Zé ganhou notoriedade ao liderar, em 2019, uma greve no Figueirense (SC) por salários e direitos de imagem atrasados. Foto: Guto Marchiori.


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