De onde vieram as nossas constelações?
19/09/2020Por Luciano Rocha
Por que deram o nome de “Sagitário” a um amontoado de estrelas no céu e de “Órion” a outro? Por que amontoaram as estrelas dessa forma, e não de outra? Por que amontoar estrelas?
A necessidade de mapear o céu parece bastante sensata em tempos de exploração espacial e estudos avançados dos objetos celestes. No entanto, este mapeamento ocorreu muito antes de sequer entendermos a diferença entre um planeta e uma estrela, em épocas e culturas muito diferentes da nossa.
Provavelmente, se fôssemos hoje redefinir e renomear as constelações, ignorando completamente o que foi feito anteriormente, teríamos representações das mais avançadas tecnologias que fazem parte do nosso cotidiano. Talvez, com essa coisa de naming rights, nossos astros seriam nomeados em homenagem a seguradoras de viagens ou marcas de refrigerante.
Ainda que não seja provável essa redefinição, podemos perguntar a uma pessoa que não conhece formalmente as constelações o que ela vê quando olha para aqueles padrões no céu, e é muito provável que ela formule algo que seja importante para si. Se for um camponês, talvez formule a constelação da enxada. Ou a do trigo. Se for um operário, talvez formule a constelação do martelo. Se for uma criança, a constelação dos Backyardigans é uma possibilidade. Isso porque as constelações dizem muito mais sobre a cultura das civilizações que as criam do que sobre o que de fato aquele amontoado de estrelas parece. É uma espécie de teste de Rorschach cultural onde uma pessoa, ao procurar organizar uma informação ambígua, sem um significado claro, projeta aspectos de sua própria personalidade.
As constelações que conhecemos hoje, oficializadas pela União Astronômica Internacional, vêm, em sua maioria, da cultura da Grécia Antiga. 47 das 88 constelações oficiais vieram a partir dos escritos de Ptolomeu sobre o trabalho de Hiparco. Por este motivo, temos constelações que representam criaturas e heróis mitológicos e contam histórias inteiras que tinham grande relevância para a civilização grega. Uma dessas histórias é a do semi-deus Perseu, filho de Zeus.
Segundo a mitologia grega, Perseu, após voltar do submundo, passa pelo reino da Etiópia, que era governado pelo rei Cefeu e a rainha Cassiopeia. O reino afundava (literalmente), pois Poseidon estava muito bravo com o fato da rainha comparar sua beleza à das ninfas nereidas, o que o deus via como uma clara demonstração da prepotência humana. Após enviar o monstro marinho Cetus para destruir a Etiópia, Poseidon propõe ao rei que sacrifique sua própria filha, Andrômeda, a Cetus, para assim encerrar a destruição. Relutante, Cefeu aceita a proposta e amarra Andrômeda em uma pedra com correntes. Neste momento, Perseu aparece, arrebenta as correntes e mata Cetus utilizando a cabeça de Medusa, que ele havia matado anteriormente. Perseu e Andrômeda se casam e voam até Argos. Lá, o herói funda o reino grego Micênico.
O mito de Perseu e da fundação do reino Micênico está inteiramente desenhado no céu. Nele, vemos Cefeu sentado um pouco acima do Pólo Norte. A seu lado direito, a rainha Cassiopéia. A princesa Andrômeda aparece ainda ao lado, amarrada nas suas correntes e de frente para o monstro Cetus, que vem do oeste. Mais a noroeste está nascendo Perseu, carregando em suas mãos a cabeça da Medusa, cujos olhos são representados pelas estrelas Algol e Gorgonea Tertia. Acima dele, voando, o cavalo Pegasus.
É importante frisar que os gregos mantinham colônias em toda a costa do mar Mediterrâneo. Assim, muitos desses mitos foram absorvidos de outros povos, como os babilônios, egípcios, sumérios e persas. Por exemplo, as constelações dos heróis gregos Órion e Hércules correspondem exatamente às constelações de Marduk e Gilgamesh, heróis sumérios.
Mas veja que isso tudo ocorria no hemisfério norte, deixando de fora as estrelas que são pouco ou nada visíveis naquele hemisfério. De fato, enquanto o céu do hemisfério norte é cheio de figuras mitológicas, o céu do hemisfério sul é cheio de instrumentos científicos e de navegação: sextante, bússola, telescópio, máquina pneumática, etc.. Isso acontece porque os europeus só mapearam o céu do hemisfério sul no período das grandes navegações.
Naquela época, a Europa já tinha abandonado os mitos e deuses herdados dos gregos há bastante tempo. Para ser mais preciso, o fez após um imperador romano, Constantino, ter sido batizado no século IV em uma seita palestina que pregava que um ser divino teria andado entre os homens e morrido após dizer que seria bom se as pessoas fossem legais umas com as outras. Alguns anos depois, o império romano inteiro se tornou cristão. Posteriormente, caiu pelas mãos dos bárbaros, mas o cristianismo permaneceu, mesmo modificando-se. E assim estamos até hoje.
Houveram, inclusive, tentativas de renomear as constelações do hemisfério norte seguindo figuras cristãs, mas nenhuma delas “pegou”. Uma dessas tentativas foi publicada em 1627 e pretendia substituir os 12 signos do zodíaco pelos 12 apóstolos de Cristo. Assim, por exemplo, Áries viraria São Pedro e Argo Navis, constelação que faz referência ao navio usado pelos argonautas da mitologia grega, se tornaria a arca de Noé.
Mas, é claro, assim como as terras do hemisfério sul já existiam antes da chegada dos europeus, também já existia seu céu, e as pessoas que habitavam essas terras já haviam desenvolvido sua própria cultura estelar. Os povos que aqui viviam, como os indígenas brasileiros, já haviam feito o mesmo movimento que os gregos e dividido o céu em padrões que fizessem sentido com a sua materialidade. Mas isso é papo para a próxima coluna.
Este texto foi fortemente baseado no primeiro volume deste excelente conjunto de apostilas do Corpo de Criação e Desenvolvimento da Olimpíada Brasileira de Astronomia e Astronáutica, que foi grande responsável pelo meu gosto pela ciência durante o Ensino Médio.
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