Cineclubismo em São Carlos faz jus à história da cidade com o cinema

Cineclubismo em São Carlos faz jus à história da cidade com o cinema

13/04/2024 Off Por Colaborador/a

Por: Gabriel Pinheiro

De acordo com dados do IBGE de 2021, o acesso ao cinema ainda é restrito para uma grande parte da população brasileira. Apenas 57,5% da população vive em municípios com salas de cinema, o que significa que 42,5% da população não tem acesso direto a esse importante equipamento cultural. Além disso, apenas 3% da produção cinematográfica brasileira é exibida em cinemas comerciais, de acordo com dados do painel de indicadores do Mercado de Exibição. Essa baixa presença de filmes nacionais nas salas comerciais revela a necessidade de alternativas para democratizar o acesso à produção cinematográfica nacional.

Esses espaços dão destaque para filmes que não encontram lugar nas grandes salas de cinema. Não só proporcionando a exibição de filmes brasileiros, como também abraçam formatos e gêneros plurais, incluindo curtas-metragens, documentários e animações não comerciais, além de longas-metragens de ficção. Os cineclubes também desempenham um papel importante na promoção de obras audiovisuais de outras regiões do mundo, como o cinema latino-americano, africano e asiático. Ao abrir espaço para essas produções menos difundidas, os cineclubes contribuem para a diversidade cultural e para o enriquecimento da experiência cinematográfica dos espectadores.

Pensando na expansão do cineclubismo no país, o Ministério da Cultura elaborou uma cartilha destinada a incentivar a formação de cineclubes em todo o país. Em conformidade com o preceito da Constituição Federal de 1988, que garante o acesso à produção cultural, o Ministério da Cultura está tentando incentivar a criação desses espaços como uma forma de promover a democratização do acesso ao cinema. A cartilha oferece orientações sobre organização para os projetos, abordando aspectos como a formação da equipe, os diversos perfis de cineclube, a seleção de filmes, a elaboração de programações e curadorias, e a proposição de debates instigantes sobre as obras exibidas. Essa cartilha por ser encontrada no site do Ministério da Cultura pelo link: (https://www.gov.br/cultura/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/cartilha-cineclubes.pdf)

Em São Carlos, durante o mês de abril, os cineclubes da cidade vão oferecer um total de 20 sessões. O Cineclube da RUA, apelido do “Cineclube da RUA ao CAIS”, tocado pela Revista Universitária do Audiovisual e o Centro Acadêmico do curso de graduação em Imagem e Som da UFSCar, apresenta uma seleção centrada na pornochanchada brasileira, com quatro exibições programadas para este mês. Desde 1981, o Cineclube do Centro de Divulgação Científica e Cultural (CDCC-USP) traz à comunidade são-carlense a experiência de ver um filme fora de circuito. Neste mês no CDCC estão previstas exibições de filmes da Suécia, Itália, França e Alemanha. Enquanto isso, o Cineclube Perangoera, que surgiu em 2014 e atualmente é sediado no auditório do LEF na USP, está realizando um ciclo dedicado ao terror brasileiro. Por sua vez, o Cineclube RAKVATZ, sediado no ICMC da USP, apresentará filmes do Irã, Japão e Brasil. A programação completa dos cineclubes de São Carlos e os endereços das sessões podem ser encontrados ao final desta matéria.

Para Athos Rubin, que coordena o cineclube da RUA atualmente, o projeto vem sofrendo com a falta de público interessado. “Por não ser algo institucionalizado pela universidade acredito que o cineclube perca bastante de seu potencial. Acho que um bom começo seria institucionalizar as iniciativas, além de talvez proporcionar uma divulgação unificada. Acho que um grande problema é que as pessoas não sabem da existência desses cineclubes, fazer com que esses grupos sejam descobertos e que as pessoas se interessem por ir às sessões é muito importante”, explica o estudante de imagem e som. Athos acredita que o movimento cineclubista é uma boa forma de incentivar a cinefilia na comunidade e o pensamento crítico.

Assim como o coordenador da RUA cita o incentivo à descoberta dos filmes, Bruna Lemes, que faz parte do grupo que promove o cineclube RAKVATZ, ressalta que o objetivo do projeto é apresentar às pessoas filmes que fujam do circuito comum. Mas a ideia, de acordo com ela, é que a construção do espaço seja coletiva. “As diversas vivências dos são-carlenses e estudantes têm muito a acrescentar aos cineclubes. Com diferentes propostas e escolhas de filmes que geralmente não são conhecidos pelo público em geral.” Para Bruna, uma organização que una os cineclubes de São Carlos em um fórum de discussão pode ajudar o movimento a crescer. “Seria muito interessante unir os entusiastas de cinema e também para um intercâmbio de ideias e sugestões de filmes para exibirmos e discutirmos”, explica Bruna.

Octávio “Mono” coordena o Cineclube Perangoera, que neste ano foi contemplado em um edital municipal da Lei Paulo Gustavo. Ele conta que a maior pretensão do Perangoera é conseguir construir uma estrutura e uma cultura que seja permanente e independente da atual coordenação. “Os trabalhos de curadoria e exibição consomem bastante tempo e energia, então garantir a execução destes trabalhos com pouco ou sem orçamento é uma das maiores dificuldades.” Uma das dificuldades identificadas é que as sessões ainda estão muito concentradas nos centros da cidade. “Existem várias barreiras sociais que entravam um amplo acesso aos cineclubes, inclusive a própria disputa com a indústria do audiovisual, sobretudo a estrangeira.” Para ele é muito importante que aconteça um trabalho conjunto dos agentes da cultura para aumentar a divulgação dos cineclubes. “Ao ponto de possibilitar a inclusão de toda a população da cidade, sobretudo os moradores das regiões que são sistematicamente excluídas das atividades culturais”, defende Octávio.

A relação da cidade de São Carlos com o cinema não é de agora. Na verdade essa relação remonta aos primórdios do próprio cinema em si. No dia 10 de outubro de 1897 foi anunciado à população são-carlense do final do século XIX que a Companhia Francesa de Variedades apresentaria o cinematógrafo dos Irmãos Lumière no Teatro Ypiranga. A invenção e patente do cinematógrafo por Auguste e Louis Lumière fez do ano 1895, dois anos antes da sessão em São Carlos, universalmente reconhecida como marco zero do Cinema. Desde então os grandes marcos da história do cinema tiveram palco também em terras são-carlenses. No dia 20 de fevereiro de 1930, por exemplo, aconteceu a primeira sessão de um filme sonoro na cidade. O filme da vez era “O Pagão”, o romance dirigido por W.S. Van Dyke, estrelado por Ramon Novarro e distribuído pela Metro Goldwyn Mayer. Durante muito tempo a cidade fervilhou de cinemas por todos os cantos. Nomes que ainda ouve-se falar são os dos cinemas Polytheama, Cine São Paulo, Cine Progresso, Cine Teatro Avenida, Cine Joia, Cine Rádio, Cine São Sebastião, Cine Teatro SESI, Cine Paratodos, Cines Studio I e II, Cine São Carlos, Cine São José e vários outros. Todos muito bem documentados no livro “São Carlos no escurinho do cinema (1897-1997)” de Marco Antonio Leite Brandão.

Porém, não foi só o cinema comercial que floresceu na cidade. Em um movimento paralelo e capitaneado principalmente pela USP e UFSCar, o cineclubismo universitário também tem o seu espaço na cidade de São Carlos há pelo menos 60 anos. No dia 15 de junho de 1961, na Escola de Engenharia de São Carlos da USP, era fundado o Cine Clube de São Carlos. Além das sessões, o cineclube também fazia palestras e formações sobre cinema. A iniciativa não durou muito mas foram feitas sessões conjuntas com o Colégio CAASO como a “Sessão Morcego” e alguns cursos de História Geral e do Brasil através de clássicos do cinema. O DCE da UFSCar também já fazia sessões nos anos de 1970. A sala de projeção Cineclube da UFSCar, que na época era na Rua Marechal Deodoro, foi palco inclusive das primeiras sessões dedicadas ao cinema soviético na cidade de São Carlos.

Certa vez em 1966, no auge da ditadura militar, a Polícia de São Carlos interrompeu uma sessão de um cineclube realizada por estudantes universitários no São Carlos Clube, devido à distribuição de um manifesto considerado subversivo. O manifesto teria conteúdo ofensivo ao governo federal e falava abertamente sobre o Presidente Castelo Branco. Os presentes, incluindo um padre, senhoras, menores de idade e pessoas alheias à sessão, foram levados à delegacia para interrogatório. Os filmes exibidos eram principalmente do cinema novo brasileiro mas a sessão também visava a promoção de um filme local e a arrecadação de fundos. Após duas horas de interrogatório, todos foram liberados. A Associação dos Universitários de São Carlos expressou surpresa com a ação policial, alegando que apenas estavam promovendo uma sessão de cultura e lançando um manifesto em prol da liberdade e da justiça.

Os cineclubes representam uma forma de resistência e uma busca por emancipação. Ao surgirem como resposta à lógica de mercado do cinema comercial, esses espaços tentam se estabelecer como uma alternativa à busca do lucro que permeia a grande indústria cinematográfica. Cineclubes emergem como locais de organização do público, proporcionando acesso à cultura e estimulando a consciência crítica. Eles desafiam a alienação imposta pelo cinema comercial, promovendo debates, reflexões e apropriação coletiva das obras audiovisuais. Ao democratizar o acesso a uma variedade de filmes e conteúdos não mainstream, os cineclubes não apenas contestam o domínio das grandes distribuidoras, mas também servem como espaços de resistência cultural, empoderando as comunidades e fomentando a participação ativa na construção de uma narrativa cultural própria, alheia aos interesses do mercado. Nesse sentido, os cineclubes não são somente locais de entretenimento, como também são centros de engajamento político e transformação social, onde o público se torna sujeito de sua própria história, desafiando a passividade imposta pelo sistema vigente.

Programação de Abril dos Cineclubes de São Carlos (SP)

05 de Abril

14h “O Homem do Pau Brasil” (Brasil, 1981) – Cineclube da RUA

06 de Abril

14h “Gosto de Cereja” (Irã, 1997) – Cineclube RAKVATZ

16h “E a Vida Continua” (Irã, 1992) – Cineclube RAKVATZ

20h “Morangos Silvestres” (Suécia, 1957) – Cineclube do CDCC

07 de Abril

18h “Esta Noite Encarnarei em Teu Cadáver” (Brasil, 1967) – Cineclube Perangoera

10 de Abril

19h “Rio Babilônia” (Brasil, 1982) – Cineclube da RUA

13 de Abril

14h “A Tragédia de Belladonna” (Japão, 1973) – Cineclube RAKVATZ

16h “Perfect Blue” (Japão, 1998) – Cineclube RAKVATZ

20h “Waterloo” (Itália, 1970) – Cineclube do CDCC

14 de Abril

18h “O Despertar da Besta” (Brasil, 1970)  – Cineclube Perangoera

15 de Abril

14h “A Mulher que Inventou o Amor” (Brasil, 1979) – Cineclube da RUA

20 de Abril

14h “Durval Discos” (Brasil, 2002) – Cineclube RAKVATZ

16h “Chamada a Cobrar” (Brasil, 2012) – Cineclube RAKVATZ

20h “O Homem do Rio” (França, 1964) – Cineclube do CDCC

21 de Abril

18h “O Profeta da Fome” (Brasil, 1970) – Cineclube Perangoera

23 de Abril

19h “O Império do Desejo” (Brasil, 1981) – Cineclube da RUA

27 de Abril

14h “Tag” (Japão, 2015) – Cineclube RAKVATZ

16h “Água Negra” (Japão, 2002) – Cineclube RAKVATZ

20h “Asas do Desejo” (Alemanha, 1987) – Cineclube do CDCC

28 de Abril

18h “Três Curtas do Diretor Marco Escrivão” – Cineclube Perangoera

Endereços:

Cineclube da RUA (Auditório do CECH – AT2, UFSCar)

Cineclube Perangoera (Auditório do LEF no IFSC, USP São Carlos)

Cineclube do CDCC (R. Nove de Julho, 1227)

Cineclube RAKVATZ (Sala 3-010 do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação – ICMC, USP São Carlos)

Redes sociais dos cineclubes:

https://www.instagram.com/rua.ufscar/
https://www.instagram.com/cineperangoera/
https://www.instagram.com/cdcc.usp/
https://www.instagram.com/rakvatz/

Referências:

BRANDÃO, Marco Antonio Leite. São Carlos no escurinho do cinema (1897-1997). 1. ed. São Carlos, 2009.

GOVERNO FEDERAL. Ministério da Cultura. Cartilha. Cinema perto de todos, Cineclubes em todo lugar. 1. ed. 2024.