Afinal, para que serve o Enem?

Afinal, para que serve o Enem?

16/11/2023 Off Por Colaborador/a

De forma prática, extinguir o vestibular e lutar por garantias de maior investimento na educação básica e superior no Brasil estão totalmente interligadas enquanto pautas e bandeiras de luta nesse momento.

Por Marcelo Hayashi

O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi criado em 1998, pelo governo Fernando Henrique Cardoso, e inicialmente servia para avaliar a qualidade do ensino médio no país. Desde o início, o Enem sempre foi vinculado ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), que por sua vez é vinculado ao Ministério da Educação (MEC). De lá pra cá o Enem passou por diversas mudanças. Se tornou o método avaliativo para acesso ao ensino superior no ano de 2004, durante o governo Lula, através da sanção da lei do Programa Universidade para Todos (ProUni). Já em 2010, com a criação do Sistema de Seleção Unificada (SISU), passou a ser uma régua de medida para milhares de instituições de ensino superior. Em determinado momento, passou a servir como nota complementar para acesso a universidades que tinham vestibulares próprios.

Mas, o que isso quer dizer na prática? E o que isso quer dizer para além do que entendemos e enxergamos sobre o Enem? E qual é o papel do Enem hoje?

O Enem é pautado pelo Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA, sigla em inglês). Um conjunto de mais de trinta países que fazem parte da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) aplicam o PISA há algumas décadas para avaliar internacionalmente o nível educacional de jovens de 15 anos, por meio de provas de leitura, matemática e ciências. Além disso, tem como princípio a democracia e a economia de mercado, visando estimular o progresso econômico e o comércio mundial. Por mais que o Brasil não faça parte da OCDE, ele busca responder a tais questões e até pretende se colocar em algum momento futuro como membro pleno dessa organização.

Aqui já temos diversas questões que, no mínimo, levantam reflexões importantes. Como uma prova de acesso ao ensino superior é pautada pelo mercado econômico ao invés de princípios pedagógicos e educativos? Como medir o nível de leitura de uma pessoa com uma prova realizada em dois dias e que é majoritariamente de múltipla escolha? E como avaliar adequadamente o desenvolvimento educacional de jovens com provas que colocam uma pressão extremamente exacerbada sob elas?

Vestibulandos se preparam por anos a fio para realizar uma boa prova, desenvolvem problemas de saúde mental nesse processo, além de problemas de saúde física. Parentes e professores cobram esses jovens por uma boa nota, como se não fosse haver vida para além do ensino superior. Escolas (sobretudo as particulares) exigem muito dos alunos com intuito de captar mais “clientes” para o próximo ano, ou aumentar a nota da escola com intuito de competirem pelas migalhas de investimento público que o governo federal e estadual dá para quem consegue notas mais altas. Colegas de sala se vêem como competidores inimigos nessa lógica, quase como se cada pessoa dentro de um cursinho pré-vestibular fosse um trabalhador de escritório em seu próprio cubículo. O que se coloca na verdade, é o Enem enquanto uma prova de resistência física e mental, e pouco enquanto uma prova pedagógica e/ou educacional.

Há debates e pesquisas científicas que são específicas sobre os métodos avaliativos e que se debruçam de forma mais profunda sobre isso. É mais que urgente que aprofundemos o entendimento e a análise dos mais variados métodos avaliativos que podem ser utilizados, e avançando nesse quesito, buscarmos atrelar quais são os objetivos dessas avaliações.

Desde o início do SISU, principalmente, o Enem é estruturado a partir de 5 competências e 21 habilidades diferentes. A reflexão que tem de ser feita nesse sentido, não é apenas avaliativa, mas formativa. Se o Enem e o PISA têm tanto peso e importância no conjunto de um grande número de países capitalistas, e pautados no mercado econômico que é hegemonizado pelo imperialismo estadunidense, devemos nos perguntar qual é a formação pedagógica e educacional que tais países pretendem ter. No caso, e sem ingenuidade, não vejo porque um país nessa condição concreta não colocaria seu ensino público e particular para responder aos interesses de um dos maiores exames vestibulares de todo o mundo, visando trocas comerciais e econômicas, e ser mais bem visto dentro de espaços como a OCDE.

Vemos hoje, por exemplo, um Novo Ensino Médio (NEM) pautado em empreendedorismo, itinerários formativos e projeto de vida, que na verdade apontam para o futuro precarizado que a classe trabalhadora enfrenta quando “adentra ao mercado de trabalho”. Na prática, ensina-se o básico do básico no ensino público, não com intuito que essas pessoas acessem o ensino superior, mas que trabalhem da forma como o capitalismo precisa. Enquanto isso, os filhos da burguesia que estudam em escolas ‘modelo’ financiadas pelos grandes conglomerados educacionais tem todo o preparo focalizado no acesso ao ensino superior, mas de forma bem mais qualificada pelo alto investimento, investimento esse que é até viabilizado por verba pública através de Parcerias Público-Privadas. Os filhos da elite recebem o que há de mais qualitativo para acessar o ensino superior e vai para além disso.

De fato, o Enem e os demais vestibulares se caracterizam enquanto um filtro de exclusão de pessoas para o ingresso no ensino superior. A forma como se estrutura a educação formal, informal e escolar no Brasil conduz a um processo de continuidade da elitização nas últimas etapas de formação de uma pessoa. Os governos do PT deram acesso a uma parcela, mas sem garantir a permanência. Deram possibilidade de acesso pelo ProUni, mas que trouxeram até endividamentos para pessoas da classe trabalhadora. Ir contra a elitização da educação no Brasil é ir no sentido do fim do vestibular e um novo processo de acesso às universidades. E esse filtro de exclusão tem dimensões de classe, étnicas, de gênero, etc., mas principalmente racista, pois a grande maioria da classe trabalhadora é composta pela população negra e periférica no Brasil.

Temos exemplos de países latino-americanos, como a Argentina, que não tem vestibulares de acesso ao ensino superior. O acesso é aberto a todo mundo que puder comprovar a finalização do ensino médio. Não coloco aqui que o modelo argentino é o espelho a ser refletido aqui, mas utilizo de exemplo para formas diferentes de ingresso nas universidades públicas. Deixo como indicação complementar que assistam ao vídeo “Vestibular: filtro de exclusão”, que gravei no início de 2020 pelo Cordilheira Cultural.

Então, o Enem enquanto um impeditivo de acesso à universidade pública vai totalmente na contramão de um projeto de democratização do acesso, independente da forma como seja feito. Uma universidade verdadeiramente popular, pública, gratuita e de qualidade não poderá restringir o acesso da população a um espaço de suma importância social. De forma prática, extinguir o vestibular e lutar por garantias de maior investimento na educação básica e superior no Brasil estão totalmente interligadas enquanto pautas e bandeiras de luta nesse momento. Isso sem falar na revogação do NEM, planos de carreira para professora, abertura de concursos, entre muitas outras.

O momento, mais do que nunca, pede que aprofundemos nossas análises sobre a questão educacional e pedagógica no Brasil.