À favor do método

À favor do método

29/07/2020 Off Por Equipe Tribuna

por Antônio Soares

Apesar da referência a Feyerabend no título, este texto não trata diretamente de suas teses, é uma provocação dirigida a quem pertence ao meio das ciências exatas e naturais, especialmente a quem critica — com razão — quem trata com misticismo questões próprias da Física, Química, Biologia e afins, mas incorre numa psicodélica visão sobre questões sociais e históricas. Faço esse esclarecimento para garantir que o objetivo do texto não passe despercebido, nem que os alvos saiam ilesos.

Há sempre três versões do mesmo fato: a minha, a sua e a verdade, diz o outro. Como quase tudo da sabedoria popular, essas palavras guardam um significado profundo. Apesar das limitações dos sujeitos, o que foi foi, o que é é. Ou seja, não é porque não conseguimos acessar a verdade — seja por ignorância, viés, escolha ou por tudo isso ao mesmo tempo — que essa verdade é mera questão de opinião. A realidade não é manifestação da nossa subjetividade nem se desdobra em diversas narrativas todas válidas a depender de quem a vê, antes pelo contrário, é a ausência de um método que lide com a realidade concreta como tal que leva a idealismos grosseiros e nos afasta cada vez mais da verdade. Não sejamos como Dona Marlene, que frente a argumentos embasados em dados e teorias conspiracionistas absurdas escolhe ficar nem tanto ao mar, nem tanto a terra…

O papel aceita tudo, também diz o outro. Que qualquer pessoa pode escrever qualquer coisa, é certo, mas nem a natureza, nem a história e nem as dinâmicas sociais têm qualquer obrigação de satisfazer as vontades e interesses de ninguém. Ocorre, porém, que as ciências humanas e sociais expressam questões políticas de forma muito mais acentuada que as ciências exatas e naturais. Ainda que as segundas expressem essas questões — e existem exemplos grotescos disso, como o “racismo científico” do século XX ou o debate atual em volta do aquecimento global –, as primeiras o fazem de maneira mais clara porque tratam diretamente da sociedade e seus horizontes possíveis, e isso se reflete em disputas dentro do próprio fazer científico e da consciência do público geral sobre assuntos tratados por essas ciências. E essas disputas têm, em geral, um lado hegemônico como era de se esperar e de fato pode ser observado. Terra-planismo e movimento antivacina recebem mais oposição do que comparações esdrúxulas entre governos populares que ampliaram acesso à educação e saúde, como Cuba, e ditaduras empresariais-militares que agravaram desigualdades e excluíram o povo do debate político, como a que tivemos instalada no Brasil em 1964.

Que exemplo infeliz, terra-planismo e movimento antivacina têm ganhado cada vez mais adesão, alguém pode pensar ao ler o parágrafo anterior. É verdade, existe uma onda anticiência crescendo com força nos últimos anos, sendo as universidades públicas alvos de uma intensa campanha de perda de credibilidade. Mas ora, isso é só mais um exemplo de questões políticas refletindo na ciência e na educação! Trata-se da faceta ideológica de legitimação de um plano econômico-político neoliberal de desmonte da coisa pública e de blindagem contra a oposição, afinal quem reclama dos cortes e ataques é vagabundo e maconheiro… Bem, essa anticiência que vemos hoje não começou com negacionismo e revisionismo barato na Física e na Biologia, ela avançou depois de um período de maturação na História e na Sociologia.

A prática é critério da verdade, isso é o que devemos ter em mente. É pela verificação experimental e evidências empíricas que avaliamos nossas considerações teóricas sobre a natureza, é pela verificação da prática social e evidências históricas que devemos avaliar nossas considerações teóricas sobre a sociedade. Sejamos críticos com nosso conhecimento e aprendizado.


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