A cidade não para

A cidade não para

03/06/2020 Off Por Equipe Tribuna

por Antônio Soares

A música A Cidade, de Chico Science & Nação Zumbi, faz uma descrição do cenário urbano que não corresponde à ideia geral de ambiente de desenvolvimento social e tecnológico. De fato, os dois primeiros versos logo trazem um contraste entre a imagem do que seria uma cidade desenvolvida no imaginário comum e a real história de construção de uma cidade. Ora, não é o tamanho e a beleza dos prédios que indicam o quão avançada é a urbanização? Pois o vocal de Chico começa narrando o nascer do sol sobre os prédios, que não surgiram do nada.

O sol nasce e ilumina as pedras evoluídas
Que cresceram com a força de pedreiros suicidas

Para quem assistiu ao filme O Homem que Virou Suco, de João Batista de Andrade, a relação é imediata. Fica escancarado, assim, que a cidade está alicerçada em cima da exploração, afinal de contas quem constrói o prédio o faz em péssimas condições de trabalho e certamente não o faz para si.

Dos versos seguintes, vemos que com o início do dia as personagens cotidianas tomam as ruas sob constante vigilância. A maneira em que a vigilância é colocada e a nomeação explícita de policiais logo em seguida apresenta questões interessantes.

Cavaleiros circulam vigiando as pessoas
Não importa se são ruins, não importa se são boas
E a cidade se apresenta centro das ambições
Para mendigos ou ricos e outras armações
Coletivos, automóveis, motos e metrôs
Trabalhadores, patrões, policiais, camelôs

Se não importa se as pessoas são ruins ou boas, o que importa? Ao retratar as pessoas em suas profissões (pedreiros, mendigos, ricos, trabalhadores, patrões…), a música nos diz que existe uma boa ordem de funcionamento das coisas e cada pessoa deve cumprir seu papel dentro dessa ordem. A vigilância, então, não serve para proteger pessoas boas e punir pessoas ruins, serve para manter essa ordem fazendo uso da opressão. Mas essa ordem em questão não é a da exploração? Importante notar ainda que as coisas vêm aos pares: coletivos e automóveis, motos e metrôs; trabalhadores e patrões, policiais e camelôs. A associação de termos em repetição relaciona a exploração e a opressão por meio dos pares trabalhadores e patrões e policiais e camelôs.

O refrão é conclusão do já descrito. A cidade não pode parar, pois sua dinâmica é determinada pelas relações entre os sujeitos que a compõe, relação essa que é marcada pela opressão com vistas à exploração.

A cidade não para, a cidade só cresce
O de cima sobe e o de baixo desce
A cidade não para, a cidade só cresce
O de cima sobre e o de baixo desce

Seguindo após o refrão, é dito que a cidade é encarada por muitos como meio de melhoria da qualidade de vida. Mas isso não passa de ilusão, a realidade acaba não concretizando essa idealização. Apesar de ser propagandeada como fonte de oportunidades, ainda impera o cenário de exploração pré-refrão.

A cidade se encontra prostituída
Por aqueles que a usaram em busca de saída
Ilusora de pessoas de outros lugares
A cidade e sua fama vai a além dos mares
No meio da esperteza internacional
A cidade até que não está tão mal
E a situação sempre mais ou menos
Sempre uns com mais e outros com menos

E o refrão repete… De Recife dos anos 1990 à São Carlos de 2020, parece que a situação não muda muito. Semelhanças não são coincidência, a ordem vigente é a mesma. A cidade não para porque os de cima querem subir cada vez mais, e farão isso até afundar os de baixo à sete palmos abaixo do chão.


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