Évariste Galois, um matemático revolucionário
17/06/2020Por Luciano Rocha
Hoje, vemos um verdadeiro embate entre a ciência e o governo. Mas ter a ciência na esfera política não é uma invenção do século XXI. Isso porque a ciência nunca foi apolítica, muito menos os cientistas. E não estou falando apenas das ciências humanas: Évariste Galois é prova disso. Galois foi um matemático francês que desenvolveu ideias que se consolidaram no que hoje é conhecida como Teoria de Galois e é bastante conhecido também pela sua história e precoce morte aos 20 anos de idade em um duelo.
Evariste Galois nasceu em 25 de outubro de 1811, em uma comuna chamada Bourg-La-Reine, há 10km de Paris, na França. É importante entender o complicado contexto histórico no qual a França se encontrava. Era o final do Primeiro Império Francês sob Napoleão Bonaparte. A Rússia organizava um ataque às tropas francesas, que não tinham escolha a não ser avançar se quisessem manter seu acesso ao mediterrâneo. Isso deu início a uma série de derrotas a Napoleão, que abdicou o trono em abril 1814, fugindo do país. As tropas mandadas em sua captura acabaram ficando do seu lado e, em 1815, Napoleão restabeleceu o império que duraria apenas 100 dias mais.
O pai de Galois, Nicolas-Gabriel Galois, era um republicano que estava a frente do Partido Liberal de Bourg-la-Reine. Com a volta de Napoleão, o prefeito de Bourg-la-Reine é destituído e Nicolas elege-se prefeito, cargo que ele continuaria a ocupar mesmo após a restauração da monarquia e suas visões fortemente republicanas dada a sua popularidade e o descrédito ao prefeito anterior, que em tese deveria ser restituído.
Tanto Nicolas quanto Adelaide-Marie, mãe de Évariste Galois, eram bem educados nos tópicos considerados importantes para a época, como literatura clássica, filosofia e religião. Assim, apesar de Galois ter recebido uma boa educação em casa, não desenvolveu conhecimentos em matemática até sua adolescência. Aos 12 anos, foi estudar no Liceu Louis-le-Grand, em Paris, o qual dizia parecer “mais como uma prisão”. Apenas aos 14 anos, teve seu primeiro curso de matemática. Ficou tão aficcionado pelos textos em geometria e teoria de equações que praticamente não se dedicava às outras matérias. Sua taxa de aprendizado em matemática era assustadora, o que fez seus professores escreverem aos seus pais os incentivando a deixá-lo dedicar-se apenas à matemática, pois o Liceu seria uma perda de tempo.
Galois decidiu então fazer o exame da École Polytechnique, a mais prestigiada instituição matemática da época no país, em junho de 1828 aos 16 anos. Surpreendentemente, ele não passou no exame de entrada. Ingressou então na École Préparatoire, hoje conhecida como École Normale, que na época era bastante inferior nos estudos em matemática. No ano seguinte publicou seu primeiro artigo na Annales de Mathematiques sobre Frações Continuadas, além de dois outros no Boletim das Ciências Matemáticas.
Naquele mesmo ano, submeteu também dois artigos à Academia de Ciências, recusados por Cauchy, famoso matemático e revisor na época, por razões incertas, uma vez que há provas documentais de que Cauchy reconhecia a importância dos escritos. Posteriormente, Galois submeteu uma nova versão do artigo ao Grande Prêmio de Matemática da Academia de Ciências, recebida pelo Secretário Joseph Fourier, outro famoso matemático, que morreu pouco depois de recebê-lo e o artigo se perdeu entre os membros do comitê do Prêmio. Novas submissões levaram a novas recusas e o artigo nunca foi publicado com Galois em vida. O jovem tinha convicção de que haviam razões políticas naquelas recusas, o que lhe trouxe grande frustração. Fatos posteriores corroboram com tal hipótese: quando finalmente publicado, em 1846, após cair nas mãos de Joseph Liouville, outro importante matemático, o trabalho foi imediatamente reconhecido como inovador e trouxeram grande reconhecimento a Galois.
Em julho de 1829, uma tragédia ocorreu na família. Forças políticas e religiosas de Bourg-la-Reine tencionaram. Um jovem padre, querendo derrubar o prefeito da cidade, Nicolas Galois, juntou-se com oponentes políticos e espalhou “poemas vulgares” onde Nicolas aparecia como autor. Esse fato foi um grande escândalo na época e Nicolas foi forçado a deixar Bourg-la-Reine e ir para Paris, onde alugou um pequeno apartamento e posteriormente cometeu suicídio. Seu funeral foi uma grande procissão entre os liberais.
Galois, desolado pela perda do pai, procurou se envolver com as tensões políticas que cresciam ao seu redor e juntou-se a Sociedade dos Amigos do Povo, que continha os mais ativos republicanos, e ganhou grande popularidade entre seus pares por sua radicalidade. O grupo era mostrados como altamente perigoso e subversivo.
Em 1830, um golpe de estado dado pelo então rei Charles X deu início à Revolução de Julho, também conhecida como Segunda Revolução Francesa, que pôs fim ao reinado da família Bourbon e iniciou uma monarquia constitucional com maior participação popular. Durante os três dias da revolução, os alunos da École foram trancados no prédio da instituição pelo diretor e não puderam participar das manifestações, levando Galois a escrever, posteriormente, uma carta com uma série de ataques ao diretor que culminou na sua expulsão da École.
Sem suporte financeiro, tentou dar aulas particulares, mas apesar de inicialmente conseguir cerca de 40 crianças matriculadas, elas não conseguiram entender suas abstratas aulas e deixaram o curso. Entrou então na republicana Guarda Nacional de Artilharia, que logo foi dissolvida e seus integrantes acusados de conspiração. Em 1831 foi preso duas vezes. Uma por gritar ameaça à vida do rei, da qual foi absolvido em tribunal, e outra por usar o uniforme da Guarda Nacional de Artilharia e foi condenado a 9 meses de prisão. Na prisão, Galois continuou trabalhando em matemática. Durante a epidemia de cólera de 1832 (que matou 100 mil franceses e explicitou desigualdades sociais no país, muito similar a algo que estamos vivendo), que afetou especialmente os presos da época, Galois foi transferido para um hospital.
No hospital, apaixonou-se pela filha de um dos médicos, Stéphanie-Félicie Poterin du Motel. No entanto, como documentado em cartas, a paixão não foi correspondida e Galois ficou devastado. A partir daqui as coisas ficam incertas. Galois foi intimado a um duelo pelo suposto noivo de Stéphanie, supostamente por suas investidas. A teoria mais aceita, no entanto, é de que Stéphanie foi utilizada politicamente para a eliminação de um inimigo político. Após saber do duelo, Galois escreveu em uma carta a amigos republicanos:
“Eu imploro, patriotas e amigos, não repreendam-me por morrer por outro motivo que não pelo meu país. Morro vítima de uma infame coquete. É em uma briga miserável que minha vida é extinta. Oh! Por que morrer por algo tão trivial? Por algo tão desprezível!”
Na noite anterior ao duelo, Galois escreve sua famosa carta a seu amigo, Auguste Chavalier, resumindo todas as suas descobertas matemáticas. Na carta, publicada posteriormente, Galois estabelece a conexão entre grupos e equações polinomiais, dizendo que uma equação só é solúvel por radicais se o grupo associado for solúvel. Essa afirmação dá uma linda explicação do porquê não conseguirmos uma fórmula para a resolução de um polinômio de grau 5 ou maior da mesma forma como existe a fórmula de Bhaskara para equações do segundo grau.
Registros sobre quem foi o oponente do duelo são confusos. Enquanto um jornal da época afirma ter sido um ex-companheiro de partido, Duchâtelet, o famoso escritor Alexandre Dumas, que teve contato com Galois, diz ter sido D’Herbinville, também republicano, que foi acusado com Galois por ter integrado a Guarda de Artilharia. O jornal também diz que apenas uma das armas estava carregada. No entanto, as informações sobre o dia do combate e idade de Galois dadas pelo jornal estão erradas, deixando as outras informações não tão críveis. O que se sabe é que Galois morreu de peritonite, causado por um tiro certeiro no estômago, que é quase sempre fatal, mostrando grande habilidade de seu oponente, principalmente se a informação do jornal de que eles estavam há 25 passos de espaçamento estiver correta, corroborando com a hipótese do processo inteiro ter sido armado.
As últimas linhas da última carta de Galois pedem para seu amigo Chavalier pedir, publicamente, a opinião de Jacobi e Gauss sobre a importância de seu trabalho. E demonstra a esperança de que, um dia, alguém conseguiria decifrar a sua bagunça. Hoje em dia sua bagunça foi decifrada e nela encontrada as mais bonitas ideias matemáticas. Galois enxergou conexão entre estruturas algébricas aparentemente muito distintas, e observar conexões entre objetos distintos demonstram um profundo conhecimento sobre como esses objetos funcionam em abstrato, jogando fora sua “roupagem”. Além disso, a Teoria de Galois possui diversas aplicações no mundo real.
Se hoje em dia (apesar de cada vez menos) escutamos CDs e assistimos a DVDs, é graças à essa teoria que possui papel essencial no desenvolvimento de algoritmos para correção de erros nessas tecnologias. É sabido que pequenos arranhões em CDs e DVDs são quase impossíveis de não acontecer, e é preciso prevenir que eles não atrapalhem a reprodução. Assim, os leitores de CDs e DVDs possuem códigos que reconstroem a informação que teria sido perdida por esses problemas físicos. Esses códigos foram essenciais para a dominância de CDs em relação às tecnologias anteriores. E tudo isso começou há quase dois séculos, com Évariste Galois, um matemático revolucionário.
Fontes:
The Princeton Companion to Mathematics – editado por T. Gowers.
Comprehensive Mathematics for Computer Scientists 1 – G. Mazzola, G. Milmeister e J. Weissmann.
Galois Theory – Ian Stewart
Évariste Galois – Vilma Bellakonda
Évariste Galois’ family
Revolução de Julho
Évariste Galois
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