O uso político e privado da hidroxicloroquina no combate à COVID-19

O uso político e privado da hidroxicloroquina no combate à COVID-19

22/04/2020 Off Por Colaborador/a

Por Luciano Rocha

Não é a primeira vez que Bolsonaro aposta em alguma substância com nome complicado como a salvação para nossos problemas. Lembram da fosfoetanolamina, a “pílula do câncer”? Esse episódio embaraçoso para a ciência brasileira colocou, de um lado, políticos de diferentes ideologias sem nenhuma formação científica, incluindo o atual presidente e, de outro, cientistas e órgãos governamentais. Os primeiros conseguiram aprovar o uso da substância, que logo após foi vetado pelo STF. O episódio ocorreu em 2016 e hoje em dia ninguém mais ouve falar da pílula. Isso porque em julho do mesmo ano foram iniciados testes em seres humanos que mostraram a ineficácia do tratamento e os testes foram suspensos em 2017. Todos aqueles que defenderam a liberação da substância seguiram suas vidas, contando o aumento do seu capital político junto a população mais vulnerável e sem formação científica que possui entes queridos com câncer, uma vez que a defesa da liberação foi bem mais noticiada que o fracasso dos testes.  

Em meio à crise causada pelo coronavírus, Bolsonaro aparece mais uma vez com um discurso milagroso: a cloroquina é a solução contra a COVID-19. Felizmente, a fosfoetanolamina não produzia efeitos colaterais graves. No entanto, nem sempre é o que acontece. Na madrugada desta segunda-feira, o médico Gilmar Lima, que estava com COVID-19, morreu em Ilhéus/BA vítima de uma parada cardiorrespiratória após utilizar hidroxicloroquina e azitromicina receitadas por um segundo médico que fugiu do protocolo estabelecido pela secretaria de saúde do estado. A hidroxicloroquina pode levar a arritmias cardíacas graves, possivelmente fatais, como foi o caso. Gilmar estava em quarentena na sua casa e apresentava um quadro leve e estável para a doença e teve uma morte absolutamente evitável. Se mesmo um médico não percebeu o equívoco cometido, o que esperar de uma população alarmada e sem formação médica? É para evitar casos como esse que a liberação de medicamentos precisa ser feita após uma série de estudos e testes que, por sua vez, precisam ser extremamente técnicos, éticos e aceitos pela comunidade científica – o que também nem sempre é o caso. Recentemente, houve um estudo sobre o uso da combinação de hidroxicloroquina e azitromicina no tratamento da COVID-19. 

Pesquisadores da Prevent Senior, uma rede privada de hospitais de São Paulo, divulgaram na última sexta-feira estudos preliminares alegando a eficácia da combinação no tratamento de pacientes com COVID-19. Em resumo, o estudo foi feito com 636 pacientes idosos que apresentavam sintomas de COVID-19 e os dividiu em dois grupos: um tratado com hidroxicloroquina e azitromicina e outro não. O primeiro grupo apresentou uma taxa de hospitalização de 1,9%, enquanto o segundo apresentou uma taxa de 5,4%. Assim, foi concluído que o tratamento com hidroxicloroquina resulta em um número menor de hospitalizações.  

Nesta segunda-feira, 20, o estudo foi suspenso pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) após o órgão descobrir que as pesquisas foram iniciadas antes mesmo de que a solicitação de aval para tal fosse submetida ao órgão, configurando um erro gravíssimo. Esse aval é essencial para que a pesquisa seja feita de forma confiável e respeite preceitos básicos de ética médica. 

É preciso entender, primeiramente, que o documento com o estudo se trata de um preprint, isto é, um artigo não revisado. Isso significa que nenhuma revista científica atestou se o que está sendo escrito ali faz sentido. Preprints são comuns na ciência quando os autores, certos de que o que está escrito é válido, querem adiantar seus resultados para a comunidade em geral enquanto os especialistas na área o avaliam. Existem diversas plataformas que recebem os preprints de cada área. Os mais comuns em biologia e medicina são o bioRxiv e o medRxiv. Neste caso, o estudo foi postado no dropbox, um sistema de nuvem não científico, algo bastante incomum. Desta forma, a comunidade científica só encontrou o estudo depois que jornalistas foram informados através da assessoria de marketing e comunicação do grupo médico. Falando em marketing, a pesquisa foi feita através de telemedicina, serviço oferecido pelo hospital, como pode-se ver no site da empresa. O anúncio possui grande visibilidade, mostrando que o estudo é bastante conveniente para a rede de hospitais. 

Diversos cientistas avaliaram o estudo, encontraram diversas irregularidades e as publicaram na internet.  A mais gritante delas é a de que não está claro se os pacientes possuíam de fato COVID-19, uma vez que não foram feitos os testes usuais. Como podemos afirmar que um tratamento é eficaz contra uma doença fazendo testes em pacientes que nem sabemos se possuem tal doença? Também não é informado quais os critérios para hospitalização, o que é particularmente importante para os pacientes idosos, já que podem conter outras doenças associadas que poderiam gerar tal hospitalização. Além disso, apesar dos dois grupos terem perfis parecidos quanto a idade e gênero, os sintomas diferiam bastante, dando a possibilidade de uma grande variação quanto a doença manifestada pelos pacientes de diferentes grupos. Outra irregularidade é que não houve nenhum mecanismo de monitoramento para averiguar se de fato o protocolo foi seguido pelos pacientes – não sabemos nem mesmo se as substâncias foram ingeridas. Por fim, existem erros técnicos quanto a medida de significância, que é bem menor que a alegada pelos autores. Tais críticas podem ser encontradas em inglês neste blog sobre integridade científica da bióloga holandesa Dra. Elisabeth Bik ou, em português, neste artigo da Dra. Natália Pasternak, pesquisadora da USP. 

É comum que empresas financiem estudos que possuem impacto positivo no produto que vendem. Produtores de abacate financiam pesquisas sobre os benefícios do abacate. Empresas de refrigerante financiam pesquisas que desassociam seus produtos da obesidade. É preciso que a população tenha condições de identificar quando há tais conflitos de interesses, o que não acontece no nosso país. O quadro é ainda pior quando existem estímulos de políticos motivados pelos seus próprios interesses, como os vindo do palácio do planalto. Esse é só um dos muitos problemas escancarados pela pandemia que estamos atravessando.

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